A vida privada acabou

O jornalista lida todos os dias com o problema da melhor definição dos limites de vida privada que deve respeitar. Diz a minha experiência que, na maior parte das vezes, a questão é levantada para tentar impedir a divulgação de factos relevantes e pertinentes. Pois este problema do jornalista, que teve o seu exemplo extremo e negro nas escutas do tabloide britânico News of the World, deixou de fazer sentido, parece mesmo assunto ridículo, por o seu objeto de debate já não existir: a vida privada, tal como a entendemos até aqui, acabou.
O jovem Edward Snowden era um dos quatro milhões (sim, quatro milhões!) funcionários ao serviço de agências dos Estados Unidos da América com acesso a informações secretas. Ele denunciou o abuso da utilização do PRISM, um programa de vigilância eletrónica do governo dos Estados Unidos (que está legalmente autorizado) e que permite à agência NSA ter acesso a correio eletrónico, conversas de voz (por IP, áudio ou vídeo), transferências de arquivos, sons, imagens e, ainda, a notificações de login de quem use programas da Microsoft, Google, Facebook, Yahoo!, Apple, YouTube ou Skype, entre outras firmas.
A onda noticiosa saída destas revelações mostrou também que esse tipo de vigilância é feita noutros países, em escala menor.
O significado mais profundo das informações de Snowden é este: chegámos à era de alguém poder detetar, processar, selecionar e descodificar todas as comunicações do mundo. O que se dizia impensável está a construir-se: os Estados poderão vir a controlar toda a Internet, todos os telefonemas, todas as mensagens do mundo.
Seguidamente, é inevitável, também as maiores empresas mundiais, as máfias criminosas, os (que tristeza...) grandes conglomerados de comunicação social e os terroristas mais organizados conseguirão fazê-lo, nem que seja pelo "assalto" à vigilância feita pelos Estados. Este processo não é, quase de certeza, reversível. Leis que se limitem a proibi-lo serão caricatamente ineficazes.
O passo a dar é outro: como podemos controlar quem pode "ler" a nossa vida pessoal? Que mecanismos teremos ao nosso alcance para fazê-lo? Como poderemos ter, cada um de nós, acesso a esses dados, para denunciar os abusos, para nos defendermos? Como tornar pública, comum a toda a sociedade, a tecnologia que ditará o fim da vida privada?
George Orwell achava que um mundo totalitário criaria o Big Brother, eliminaria a vida privada e, com isso, a liberdade individual. Enganou-se: afinal, o mundo da globalização, o da democracia ocidental, seria o mundo que acabaria com a vida privada.
Por alguma razão, aliás, nenhum país campeão desta hipócrita liberdade - que só protege, afinal, a liberdade de fazer negócios - deu asilo ao jovem Snowden

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