Voltar a acreditar no jornalismo

A comunicação que li no 4.º Congresso dos Jornalistas Portugueses

A mentira
O jornalismo tornou-se essencial nas nossas vidas porque conseguiu fazer com que os leitores acreditassem nele. Independentemente dos projetos editoriais, dos interesses económicos, políticos ou culturais que estivessem por detrás desses projetos editoriais, o jornalismo moderno prometeu sempre procurar a verdade, jurou tudo fazer para distinguir o boato da verdadeira notícia. 
Publicar a verdade é, porém, cada vez mais difícil. 
Todos os dias jornais, rádios e televisões mostram-se decididos em ganhar em velocidade a batalha nas redes sociais. A informação é cada vez menos procurada, avaliada, verificada ou explicada; é, cada vez mais, apenas replicada, disparada. Depois, apesar da fragilidade da sua sustentação, essas “notícias” são comentadas por um exército de opinadores (onde eu me tenho incluído), de escassa diversidade e muitas vezes ausente pluralidade ideológica e cultural, que acabam por caucionar e amplificar para a opinião pública uma provável falsa realidade.
Todos os dias os jornais, em todo o mundo, estão assim a violar o compromisso com a verdade, seja em notícias muito relevantes, seja em relatos pouco importantes, e estão a deixar de ser o local onde os leitores e telespectadores conseguem distinguir o boato, exponencialmente amplificado pelas redes sociais e muitas vezes reproduzido como verdade pela imprensa, daquilo que é a verdadeira e comprovada notícia. 
Este caminho levará à vitória do facebook e à irrelevância da profissão do jornalista.

O medo 
Para além da relação complexa com as redes sociais, da degradação das condições de trabalho nas redações e da fragilidade financeira nos grupos de comunicação social, matérias que julgo que este congresso dos jornalistas portugueses discutirá profundamente, há outro fator que está a levar os jornais a falharem o seu compromisso com a verdade, muitas vezes não identificado, e que é o medo dos jornalistas: 

  • O medo de incomodar as fontes. 
  • O medo de pensar diferente. 
  • O medo de não ser aceite pela elite corporativa da classe. 
  • O medo dos poderes e grupos de pressão económicos, políticos, judiciais, desportivos e culturais. 
  • O medo do desemprego. 
  • O medo dos chefes. 
  • O medo das administrações. 
  • O medo de ser sensacionalista e, contraditoriamente. o medo de não conseguir fazer vender jornais. 
  • O medo da inovação. 

Carreirismo, servilismo, amiguismo, elitismo e causas 
Para além do medo, outras doenças empurram o jornalista a deixar em segundo plano o seu compromisso com a verdade: 

  • O carreirismo - A liberdade de imprensa sofre com o carreirismo dos jornalistas ou com a legítima necessidade de garantir uma sobrevivência financeira digna. Alguns jornalistas estão ocupados a construir caminho para outras carreiras ou, desiludidos com a profissão e enfrentando o espectro do desemprego, ficam conformados em ser assessores de políticos do governo, de autarquias, de partidos ou de empresas dominantes no mercado. 
  • A este problema alia-se uma tendência cultural para o servilismo para com os poderosos e para o amiguismo, para tornar notícia aquilo que não o é, mas que dá jeito a alguém conhecido que o seja. 
  • Temos ainda a tentação do elitismo. Quase todo o jornalismo de grande difusão vive afastado dos cidadãos e demasiado próximo dos poderosos. 
  • E a verdade sofre ainda com a utilização perversa do “jornalismo de causas”, ao serviço de batalhas não jornalísticas, com a invenção de campanhas noticiosas ao serviço de grupos de pressão ou de agências de comunicação. 

A falsa deontologia 
Temos ainda o sistema político e editorial em que vivemos, que tende a limitar o exercício da liberdade de imprensa para lá do que é razoável: 

  • Um quadro legal e uma interpretação deontológica dos deveres dos jornalistas que, hipocritamente, servem os interesses informativos dos poderosos – Em muitas redações usa-se o argumento da deontologia, a interpretação abusiva do código deontológico e da lei para impedir a publicação de notícias legítimas. 
  • Um sistema de regulação paroquial, com a ERC no seu topo, que se preocupa com as notícias que afetam os amigos e os queridos inimigos, os influentes, os atores da vida política e económica e ignora os atentados à privacidade e ao bom nome dos cidadãos anónimos, passando também por cima ou quase ignorando as verdadeiras violações à ética jornalística cometidas todos os dias por toda a imprensa, da dita séria à dita cor-de-rosa, da económica à desportiva, mas que não têm impacto visível nos círculos do poder por afetar, sobretudo, cidadãos comuns (vejam-se as notícias de crimes) ou gente que não é querida das elites portuguesas. 
  • E o problema, repito, começa dentro das redações. Um jornalista pode ter uma carreira construída a servir sociedades secretas em vez de servir leitores. Um jornalista pode esconder a sua preferência partidária e enganar quem o lê. Um jornalista pode omitir qual o clube do seu coração e simular isenção. Pode servir secretamente um candidato a primeiro-ministro e ir parar ao Governo. Pode escrever um milhão de notícias com base em fontes anónimas, não verificadas, destruir reputações e ainda ganhar prémios! Pode recusar corrigir publicamente os erros que comete. Pode deturpar o respeito pelo exercício do direito de resposta dos alvos das suas notícias. 
  • A liberdade de imprensa em Portugal corre perigo com a incapacidade empresarial de enfrentar a mudança dos tempos, com a fragilidade económica e financeira dos muitos grupos de comunicação social e a tendência para ela passar para a posse de poucos. O aumento dos casos onde acontece o sacrífico do jornalismo em troca do efémero favor comercial é só um dos sintomas que um olhar atento na leitura dos jornais facilmente descobre. 

Como corrigir os nossos erros? 
Há muitos fatores externos e internos ao jornalismo que o estão a matar. Como cidadãos poderemos fazer muitas coisas para lutar contra essa tendência, se formos civicamente empenhados. Mas como somos jornalistas temos de começar por reconhecer e identificar os nossos próprios defeitos, os que têm origem, exclusivamente, nas nossas práticas profissionais quotidianas. 
Muitos destes erros têm, porém, uma correção lógica e imediata aplicável nas nossas redações: a simples e rigorosa adoção, no dia a dia, notícia a notícia, frase a frase, do velhinho código deontológico dos jornalistas, nos seus curtos 10 artigos, sem palavras a mais nem interpretações limitativas adicionais, sem abrir exceções à regra, sem imaginativas interpretações/deturpações jurídicas, permitindo a coexistência de todos os tipos de jornalismo – de referência, tablóide, partidário, empresarial, desportivo, económico, cultural, social, etc. – e promovendo a pluralidade ideológica e cultural. 
Voltarmos, portanto, ao básico é capaz de resolver, por si só, muitos destes problemas e iniciaria o longo processo de inversão da tendência de os leitores deixarem de acreditar no jornalismo e nos jornalistas, vistos cada vez mais como meros arautos do poder instituído. 
Penso, igualmente, que é essencial serem os próprios jornalistas, individualmente, a tomarem a iniciativa de iniciar um caminho para voltar a credibilizar junto da opinião pública a sua profissão e a sua própria reputação individual. 

Declaração de interesses 
Uma das medidas que penso que este congresso dos jornalistas deveria aprovar seria uma recomendação a todos os jornalistas portugueses para que anualmente tornassem pública (talvez no sítio da Carteira Profissional) uma declaração de interesses voluntária, não obrigatória, que abrangesse as influências ou ligações profissionais, contratuais, patronais, políticas, familiares, económicas, desportivas, culturais ou outras que podem, de alguma forma, direta ou indiretamente, influenciar o exercício da sua profissão. 
Esta medida simples de transparência pode ajudar decisivamente a que as pessoas voltem a acreditar mais nos jornalistas do que no que leem por aí escrito no facebook – um passo essencial para sobrevivência do jornalismo. 

Literacia da comunicação 
Por outro lado, podemos tentar que os cidadãos e o Estado, para garantir a saúde da própria democracia, não se conformem com a degradação do jornalismo. 
Penso, por isso, que este congresso deveria secundar uma proposta de recomendação à Assembleia da República e ao governo no sentido de introduzir no ensino básico, para todos os estudantes, uma disciplina de literacia da comunicação de massas ou equivalente: 

  • uma disciplina que ensine os jovens a interpretar, a descodificar, a criticar e a valorizar as mensagens da comunicação social, dos jornais, da TV, da rádio, mas também da Web, das redes sociais, e do que os poderosos dizem através de todos estes meios; 
  • uma disciplina que ensine os jovens a defenderem-se dos crimes perpetrados através das redes sociais e da internet (da calúnia, à fraude e à pedofilia), demonstrando que o que é difundido por milhões de pessoas como verdadeiro pode ser a mais pura falsidade e que uma das missões do jornalismo é ajudar a distinguir a verdade da falsidade; 
  • uma disciplina que ensine os jovens a entender e a interpretar os vários géneros jornalísticos e a distinguir opinião de notícia, reportagem de análise, crónica de relato; 
  • uma disciplina que analise e revele os mecanismos da manipulação informativa; 
  • uma disciplina que forme futuros leitores e consumidores de informação jornalística capazes de serem exigentes e qualificados críticos do trabalho dos jornalistas que nos obriguem, a nós jornalistas, a deixar de ter medo, que nos obriguem a sermos corretamente deontológicos, que nos obriguem a sermos transparentes, que nos obriguem a sermos pluralistas, que nos obriguem a termos capacidade de mudarmos metodologias profissionais de forma a respondermos adequadamente às constantes mudanças da sociedade e às novas necessidades dos leitores, ouvintes, espectadores e interlocutores. 

Tenho humildemente de reconhecer que, em 32 anos de profissão, a emergência de alguns dos enormes erros que anteriormente listei e que agora estão a matar o jornalismo teve a minha quota de participação ativa. Mas, por mim, estou disposto a tentar, ainda, a emendar a mão. 
Mas mais do que tudo o resto, os jornais e os jornalistas precisam de se focar numa coisa: reforçar o seu compromisso com a verdade, ou, aliás, com as várias verdades que uma mesma realidade comporta. Quanto mais próximos dela e delas estiverem os nossos jornais e os nossos jornalistas, mais próximos estaremos da solução para os nossos problemas que se resolverão quando as pessoas voltarem a acreditar no jornalismo. 
Pedro Tadeu 
Carteira profissional 3121 
18 de dezembro de 2016 

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