A investigação do Ministério Público a uma declaração de Miguel Sousa Tavares sobre Cavaco Silva não tem piada. Os assuntos de Estado são sérios, muito sérios.
O Código Penal prevê cadeia e multas para quem ofenda a honra do Presidente da República e para quem "ultraja" (sic) os símbolos nacionais: bandeira e hino. O Presidente representa a República, garante a independênia nacional, a unidade do Estado, o regular funcionamento das instituições e jura fazer cumprir a Constitução.
Num país que levasse os seus símbolos e a honra do Presidente a sério, todas as escolas, esquadras, tribunais, hospitais e outros edifícios públicos teriam, neste momento, a bandeira nacional hasteada e o retrato de Cavaco Silva exposto nos locais mais frequentados. Todos os funcionários da administração central ou autárquica saudariam a bandeira e cantariam o hino em diversas reuniões coletivas, formais ou informais.
A Constituição (em particular o que ela define sobre instituições democráticas, símbolos nacionais e órgãos de soberania) seria ensinada nas escolas.
Se quiséssemos manter vivo o respeito pelas instituições e pelos símbolos nacionais, o próprio amor pelo País, era isto que faríamos como, aliás, acontece em muitas velhas democracias. Mas não...
A repulsa pelo Estado Novo fascista - cujo nacionalismo colonialista se apropriou dos símbolos nacionais - classificou qualquer cerimonial de cariz patriótico ao nível da palhaçada. Foi o fim generalizado de sinais públicos de respeito pelo País. Sobrou apenas um hábito, com sabor anacrónico - cantar o hino em jogos de seleções.
Os presidentes da República que tivemos, desde há 38 anos, aceitaram isto. Não se deram ao respeito. Por isso, a democracia portuguesa de hoje recusa salamalaques aos seus símbolos. Por isso, o artigo do Código Penal invocado pelo Ministério Público até soa a lei antidemocrática.
Com Cavaco Silva a degradação agravou-se. Ele falhou nas suas funções presidenciais básicas: contribuiu, com parte da classe política, para a perda da independência económica do País; fez vista grossa a constantes e variadas agressões à Constituição; foi complacente com os atropelos ao normal funcionamento das instituições democráticas e às ameaças à unidade do Estado que ocorreram, frequentemente, na ilha da Madeira.
O político Cavaco Silva descredibilizou-se: o seu gabinete meteu-se em conspiratas contra o primeiro-ministro Sócrates; ele próprio foi confrontado na imprensa com a compra de uma casa e uma ligação ao BPN que afetou a sua reputação; viu políticos que o acompanharam serem suspeitos de crimes; afastou-se do povo ao queixar-se faltar-lhe dinheiro para despesas; não desmente ter entrado em conflito com o Conselho de Estado por causa do comunicado final.
Cavaco Silva, para se sentir com dignidade de Estado, usa, pela segunda vez, o aparelho de Estado para castigar hipotéticas ofensas à instituição que, sem inocência mas sem culpa exclusiva, não consegue dignificar. Uma tristeza decadente, um reflexo do País.
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