1 . Fui convidado a fazer esta intervenção na sequência, conforme me foi dito, de um texto de opinião que escrevi no Diário de Notícias sobre o atentado em França ao jornal Charlie Hebdo. Permitam-me recordar esse texto:
“Defendem o direito de publicar um cartoon de Maomé, nu, genitais à mostra, rabo espetado com uma estrela no cu mas convivem com a lei que promete três anos de cadeia a quem injurie o Presidente da República.
“Gritam pela liberdade de imprensa mas só reconhecem o direito de ser jornalista a quem o Estado e a elite da classe aceitem passar um cartão profissional.
“São cúmplices por inação da opacidade informativa do governo, da Comissão Europeia, das autarquias, da justiça, dos bancos, das grandes empresas, dos clubes, dos falsos ricos, de uma hipócrita e ideológica noção de reserva da vida privada utilizada como álibi para não dar notícias.
“Praticam no jornalismo a autocensura de ética falsa, serventuária do poder, e depois ficam espantados quando o New York Times recusa publicar os cartoons de Maomé e põe na primeira página a mesma foto escolhida pelo tabloide Correio da Manhã: o momento em que um terrorista dispara para matar um polícia caído no chão. E não param para refletir seriamente sobre os seus próprios critérios profissionais, sobre as doenças do jornalismo de causas, sobre a frieza em momentos de frenesim.
“Choram pelos cartoonistas assassinados do Charlie Hebdo, chamam herói ao diretor assassinado: Stéphane Charbonnier, apoiante do Partido Comunista Francês, antigo colaborador do jornal do PCF, o L’Humanité. Algumas pessoas que agora o glorificam defendem, em Portugal, que quem escreva no jornal comunista Avante! não possa ser jornalista.
“Chamaram “republicana” à marcha de Paris e viram, sem pestanejar, na primeira fila de dignitários o primeiro-ministro da monarquia inglesa, o rei da Jordânia, vários líderes que perseguem jornalistas e outros suspeitos de violação de direitos humanos.
“Placidamente noticiam que o cristão Breivik, assassino de 77 jovens noruegueses, na cadeia onde cumpre 21 anos de pena, exige que lhe troquem a PlayStation 2 pela 3.
“Escrevem no Facebook pela liberdade mas tentam impor a censura prévia aos comentários de leitores nos sites de jornais. Estupidamente não se ralam por esses insultos serem escritos anonimamente. E, já agora, aceitam resignados que José Sócrates seja proibido de dar entrevistas.
“O meu coração também sangra pelos mortos do Charlie Hebdo. Adorava ter estado na manifestação de Paris. O que escrevi aqui não é sobre terrorismo, é sobre as contradições insanáveis do jornalismo no meu país que o belo movimento de solidariedade, tragicamente nascido, agudamente expõe ao confrontar-se com a prática dos dias vulgares. Lamento, mas recuso ser boi de algumas manadas.”
2 . Este texto revela que estou convencido que a imprensa livre está a criar dentro de si o germe da limitação abusiva à liberdade de imprensa.
E quais são os maiores constrangimentos à liberdade de imprensa que os jornalistas portugueses enfrentam hoje?
O primeiro é o medo dos jornalistas: o medo de incomodar as fontes, o medo de pensar diferente, o medo de não ser aceite pelo rebanho corporativo da classe, o medo dos poderes e dos grupos de pressão económicos, políticos, judiciais, desportivos e culturais. O medo do desemprego, dos chefes, das administrações. O medo de ser sensacionalista e o medo de não conseguir fazer vender jornais. O medo da inovação.
A liberdade de imprensa sofre com o carreirismo dos jornalistas – alguns a construir caminho para outras carreiras como assessores de políticos do governo ou de empresas dominantes no mercado - aliado a uma tendência cultural para o servilismo, para o respeitinho.
A liberdade de imprensa sofre com uma predominante incompetência técnica de muitos jornalistas, que limita a sua capacidade de agendamento autónomo de notícias, alternativo ao das grandes centrais de informação e diferente das tendências noticiosas dominantes.
A liberdade de imprensa é esquecida com a tentação do elitismo, uma atitude redutora das escolhas editorias e criadora de cumplicidades perigosas com objetos e fontes noticiosos.
A liberdade de imprensa recua com a utilização perversa do “jornalismo de causas” ao serviço de causas não jornalísticas, com a invenção de campanhas noticiosas ao serviço de grupos de pressão política, económica, desportiva ou cultural.
A liberdade de imprensa está limitada por um quadro legal e uma interpretação deontológica dos deveres dos jornalistas que, hipocritamente, servem os interesses informativos dos poderosos e promovem a autocensura injustificada. Em muitas redações usa-se o argumento da deontologia e da lei para impedir a publicação de notícias legítimas.
Para se ser jornalista é preciso que o Estado e uma elite dos jornalistas, juntos através da Comissão da Carteira Profissional, aceitem a entrada na profissão.
Isto, na minha visão, pode um dia impedir o exercício da profissão a quem pensa de maneira diferente e tenha capacidade para incomodar o status quo. É uma tentação inevitável.
A liberdade de imprensa é vigiada por um sistema de regulação paroquial, que se preocupa com as notícias que afetam os amigos e os queridos inimigos, os influentes, os atores da vida política e económica e ignora os atentados à privacidade e ao bom nome dos cidadãos anónimos, passando também por cima ou quase ignorando as verdadeiras violações à ética jornalística cometidas todos os dias por toda a imprensa, da dita séria à dita cor-de-rosa, da económica à desportiva, mas que não têm impacto visível nos círculos do poder por afetar, sobretudo, cidadãos comuns ou gente que não é querida das elites portuguesas.
A liberdade de imprensa em Portugal corre perigo com a incapacidade empresarial de enfrentar a mudança dos tempos, com a fragilidade económica e financeira dos muitos grupos de comunicação social e a tendência para ela passar para a posse de poucos, por vezes estrangeiros.
A sangria económica e financeira dos últimos anos, a crise no país e a crise específica da comunicação social aumentou o desemprego no jornalismo e diminuiu a diversidade de pensamento nas redações. É, também ela, um perigo para a liberdade de imprensa.
O aumento dos casos onde acontece o sacrífico do jornalismo em troca do efémero favor comercial é só um dos sintomas que um olhar atento na leitura dos jornais, todos os dias, facilmente descobre.
E o problema, repito, começa dentro das redações.
Um jornalista pode ter uma carreira construída a servir sociedades secretas em vez de servir leitores.
Um jornalista pode esconder a sua preferência partidária e enganar quem o lê.
Um jornalista pode omitir qual o clube do seu coração e simular isenção.
Pode servir, secretamente, um candidato a primeiro-ministro e ir parar ao Governo.
Pode escrever um milhão de notícias com base em fontes anónimas, não verificadas, destruir reputações e ainda ganhar prémios!
Pode recusar corrigir publicamente os erros que comete.
Pode deturpar o respeito pelo exercício do direito de resposta dos alvos das suas notícias.
Pode, oh se pode, almoçar grátis com um pelotão de cobradores de almas.
Um jornalista pode noticiar política sem ter lido a Constituição. Pode ser de cultura e nunca ter lido Os Lusíadas. Pode ser de Justiça sem saber a diferença entre Código Penal e Código do Processo Penal. Pode ser de economia e incapaz de calcular uma taxa de juro.
3 . O jornalismo está afastado dos cidadãos e isso tem tudo a ver com falhas na liberdade de imprensa.
Lembro o caso dos medicamentos inovadores para da Hepatite C.
Noticiámos em Setembro de 2014, citando as autoridades, que cem doentes seriam tratados até ao final desse ano com o novo medicamento, apesar de custar mais de 40 mil euros por cabeça. Não nos escandalizámos quando isso falhou. Ficámos engasgados. Não fiscalizámos. Protegemos fontes. Fomos oficiosos, preocupados em somar os custos para o Estado e quase omissos acerca de custos humanos. Pensámos em acusações de demagogia e populismo, agimos com cobardia.
Foi preciso um doente morrer sem acesso ao Sofosbuvir e outro doente conseguir gritar ao ministro, frente às câmaras de televisão: "Não me deixe morrer!" para, finalmente, o impasse financeiro ser resolvido – e em apenas 24 horas!
Todos os jornais, todas as televisões falharam. Não publicámos nem emitimos notícias suficientes sobre o tema. Não demos relevância eficaz ao caso. Não impedimos aquela morte.
E todos os jornais falharam no caso BES, como já tinham falhado antes com o BPN e o BPP – sempre que a banca é motivo de notícia, a incapacidade dos jornais de publicarem informação rigorosa que sirva os interesses dos cidadãos é confrangedora.
Quando se acusa o Presidente da República, o Banco de Portugal e a CMVM de ter informado mal os pequenos acionistas que investiram poupanças num GES falido, esquecem-se as recomendações, no mesmo sentido, que os jornais e os jornalistas especializados também fizeram. Não são eles também culpados de ter enganado os leitores?
4. Outro perigo para a liberdade de Imprensa tem a ver com a liberdade individual de todos nós. Recordo aqui um texto que escrevi há dois anos:
“O jornalista lida todos os dias com o problema da melhor definição dos limites de vida privada que deve respeitar. Diz a minha experiência que, na maior parte das vezes, a questão é levantada para tentar impedir a divulgação de factos relevantes e pertinentes. Pois este problema do jornalista, que teve o seu exemplo extremo e negro nas escutas do tabloide britânico News of the World, deixou de fazer sentido, parece mesmo assunto ridículo, por o seu objeto de debate já não existir: a vida privada, tal como a entendemos até aqui, acabou.
“O jovem Edward Snowden era um dos quatro milhões (sim, quatro milhões!) funcionários ao serviço de agências dos Estados Unidos da América com acesso a informações secretas. Ele denunciou o abuso da utilização do PRISM, um programa de vigilância eletrónica do governo dos Estados Unidos (que está legalmente autorizado) e que permite à agência NSA ter acesso a correio eletrónico, conversas de voz (por IP, áudio ou vídeo), transferências de arquivos, sons, imagens e, ainda, a notificações de login de quem use programas da Microsoft, Google, Facebook, Yahoo!, Apple, YouTube ou Skype, entre outras firmas. A onda noticiosa saída destas revelações mostrou também que esse tipo de vigilância é feita noutros países, em escala menor.
“O significado mais profundo das informações de Snowden é este: chegámos à era de alguém poder detetar, processar, selecionar e descodificar todas as comunicações do mundo. O que se dizia impensável está a construir-se: os Estados poderão vir a controlar toda a Internet, todos os telefonemas, todas as mensagens do mundo.
“Seguidamente, é inevitável, também as maiores empresas mundiais, as máfias criminosas, os (que tristeza...) grandes conglomerados de comunicação social e os terroristas mais organizados conseguirão fazê-lo, nem que seja pelo "assalto" à vigilância feita pelos Estados. Este processo não é, quase de certeza, reversível. Leis que se limitem a proibi-lo serão caricatamente ineficazes.
“O passo a dar é outro: como podemos controlar quem pode "ler" a nossa vida pessoal? Que mecanismos teremos ao nosso alcance para fazê-lo? Como poderemos ter, cada um de nós, acesso a esses dados, para denunciar os abusos, para nos defendermos? Como tornar pública, comum a toda a sociedade, a tecnologia que ditará o fim da vida privada?
George Orwell achava que um mundo totalitário criaria o Big Brother, eliminaria a vida privada e, com isso, a liberdade individual. Enganou-se: afinal, o mundo da globalização, o da democracia ocidental, seria o mundo que acabaria com a vida privada.
“Por alguma razão, aliás, nenhum país campeão desta hipócrita liberdade - que só protege, afinal, a liberdade de fazer negócios - deu asilo ao jovem Snowden.”
5. Mas há muitos mais perigos para a liberdade de imprensa na sua associação aos ataques à própria liberdade de expressão
Sou capaz de citar uma série de casos onde as autoridades e o poder executivo, judicial e legislativo tentam apertar abusivamente os limites de utilização da liberdade de expressão
Tivemos Miguel Sousa Tavares, a palavra palhaço usada como possível insulto a Cavaco Silva e um processo levantado pelo Ministério Público, depois de um pedido de intervenção feito pelo Presidente da República. Acabou arquivado mas o sinal ficou dado: “Tenham cuidado!...”
Tivemos um cidadão em Elvas, totalmente desenquadrado de manifestações autorizadas, que no Dia de Portugal decidiu verberar o Presidente da República. Acabou detido e, em 24 horas, foi levado e condenado em tribunal – a sentença foi anulada, o processo ainda não acabou, o Presidente a República pediu para a queixa ser retirada. Mas o sinal ficou dado: “Tenham cuidado!...”
Há uns tempos onze militantes da JCP foram detidos numa escola do Porto por pintar um mural a criticar o Governo. A PSP, aparentemente, contrariou assim inúmeras decisões judiciais de sentido contrário e até um acórdão do Tribunal Constitucional sobre este tipo de manifestação política. O sinal ficou dado: “Tenham cuidado!...”.
E a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) tenta, e está a conseguir, acabar com os comentários livres dos leitores em sites de informação. A desculpa para a censura dos leitores é a defesa da moral e dos bons costumes – e, de facto, muitos comentários são abjetos - mas estas limitações apresentadas com aparentes bons motivos vão servir, certamente, para um exercício de pura censura ideológica dos leitores dos sites de informação, mesmo se feita involuntariamente mas sempre, certamente, pela calada…
São sinais preocupantes.
6. Está na ordem do dia a violação do segredo de justiça. A existência desta limitação na lei não é apenas uma limitação à liberdade de imprensa, serve para manipular a opinião pública através da imprensa.
O artigo 86 do Código do Processo Penal é taxativo: o segredo de justiça só pode ser declarado se um juiz aceitar um pedido razoável de um arguido, de um assistente ou do ofendido. É o parágrafo 2. Também pode existir segredo de justiça na fase de inquérito do processo, quando o Ministério Público entender que, passo a citar, "os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem". É o parágrafo 3. E como é o primeiro parágrafo, o que determina o "espírito" da lei? Proclama: "O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as exceções previstas na lei."
A lei é hipocritamente aplicada. A maior parte dos processos são públicos mas apenas por não interessarem à imprensa. Nas poucas dezenas que os jornais acompanham a regra é declarar-se o segredo de justiça e, a partir daí, desencadear-se uma batalha, paralela à guerra jurídica, em que as partes envolvidas pingam detalhes a conta-gotas, selecionados e não verificáveis pela leitura das peças processuais.
O tempo do segredo de justiça liberta o boato anónimo, a coberto do sigilo do jornalista. É o tempo para as autoridades e os arguidos, muitas vezes pessoas poderosas que justificam o interesse mediático, manipularem a opinião pública.
O jornal que tentar colocar-se fora dessa luta tem um belo futuro: a morte. Os leitores entenderão a ausência de notícias como incapacidade dos jornalistas desse título ou, pior, alvitram a existência de uma cumplicidade silenciosa com os suspeitos. É um suicídio profissional. Não há outra solução senão participar no jogo sujo, inevitavelmente favorável a quem procura uma acusação. É o segredo de justiça que impõe esta porcaria e, perversamente, limita a liberdade da imprensa, a liberdade.
Ainda hoje escrevi isto no Diário de Notícias, a propósito das recentes violações de segredo de justiça no caso Sócrates:
“Culpo os jornais por isso? Não. Se me entregassem tais informações teria de as publicar. Culpo a existência do segredo de justiça, pois, como todos os sigilos, dá armas a quem tem informação secreta para manipular a sociedade. A investigação criminal em Portugal fá-lo, desde sempre, sem consequências.
“O bem que o segredo de justiça tenta proteger tem, há décadas, como se prova diariamente pela simples leitura da imprensa, um valor muito inferior ao mal que a sua existência provoca. Acabe-se com ele, de vez e a sério.”
7. Por fim, encontro perigos para a liberdade de imprensa na turba, na multidão que vocifera na internet. Lembro-me de um caso de milhares de comentários indignados ou insultuosos em múltiplos fóruns contra as opiniões de um cronista da direita católica do Diário de Notícias, César das Neves. Essas críticas não são o problema – quem vai à guerra da opinião também leva, não pode esperar passar sem ser criticado, mesmo se violentamente..
O problema foi o lançamento de uma página no Facebook chamada "Correr com o César das Neves do DN, TV, Rádio e da Universidade Católica Portuguesa”.
Uma série de protagonistas políticos, numa unanimidade rara entre quadrantes ideológicos antagónicos, criticaram as posições mais polémicas do professor e participaram neste pedido de saneamento que, felizmente, abortou.
Como opositor das ideias de César das Neves estou de acordo com a maior parte das críticas, mesmo as mais violentas, que são feitas ao sentido do que ele diz e escreve. Como indivíduo, no entanto, sinto-me obrigado a tomar outra posição: exijo que ele continue a dizer, a escrever e a tornar público o que lhe der na real gana.
Recuso alinhar em carneiradas que investem, cegas, contra a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Indignam-me estes abaixo-assinados ou grupos no Facebook, cada vez mais frequentes, que pretendem silenciar A, B ou C. A História já ensinou vezes sem conta que quem ganha com isso não são nem os explorados nem os oprimidos.
Lembrem-se do poema atribuído ao pastor evangélico Martin Niemöller e que foi glosado por Bertold Brecht, tantas vezes repetido mas, parece, a precisar de ser repetido ainda mais vezes:
Primeiro vieram prender os judeus
E eu não levantei a minha voz
Porque não era judeu.
Depois vieram prender os comunistas
E eu não levantei a minha voz
Porque não era comunista.
Depois vieram prender os homossexuais
E eu não levantei a minha voz
Porque não era homossexual.
Depois vieram prender os sindicalistas
E eu não levantei a minha voz
Porque não era sindicalista.
Depois vieram prender-me
E já não havia mais ninguém
Que levantasse a voz por mim.
Muito obrigado
Lisboa, 24 de fevereiro de 2015
Intervenção lida na sessão-debate “Liberdade de Expressão – a manipulação da Comunicação Social” promovida na Casa do Alentejo pela Associação Conquistas da Revolução
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