A liberdade conduz à submissão? A pergunta assustou a minha cabeça quando televisões e jornais me assaltaram com um arrastão de reportagens sobre o lançamento do filme As Cinquenta Sombras de Grey.
Em Londres umas centenas de miúdas com propensão para a obesidade e dentes desalinhados guincharam, na noite fria da estreia, frente ao cinema Odeon Leicester Square, para saudar a passagem dos atores, lindos, Dakota Johsson e Jamie Dornan mais a escritora, feia, do livro replicado em argumento, E.L. James.
A ritualização do êxito, sobretudo junto do público feminino, teve expressão em todas as grandes cidades ocidentais. Em Portugal juram que o filme vendeu quase 50 mil bilhetes antes da estreia. O êxito irritou os críticos de cinema e os intelectuais mais relevantes, a reduzirem, com simplicidade cândida, o fenómeno ao estatuto de lixo porno soft, insulto respondido com a habitual indiferença do povo.
Um jovem milionário, consumidor refinado e filantropo perfeito, engata uma estudante, virgem, sonhadora. O Príncipe Encantado tem propensão para o sadomasoquismo, usa um "Quarto da Dor" e convence a Gata Borralheira, com gestos românticos temperados por tiradas carnais, a alinhar em sexo com instrumentos de tortura... Se ele fosse pobre, ela corria a fazer queixa por violência doméstica!
Antes desta moda sadomasoquista para pudicos tivemos os livros e filmes da saga Twilight: o êxtase sexual alcançava-se aí com sangue chupado por vampiros de passerelle, coisa suficientemente apelativa para render três mil milhões e meio de dólares e ser descaradamente copiado por derivados deste sucesso redigido por Stephenie Meyer, uma escritora por acaso também gordita, como a E.L. James e as fãs de Grey em Londres.
Nascemos com a revolução sexual dos anos 60 do século passado. A pílula, o sexo antes do casamento, a masturbação, a homossexualidade, as fantasias eróticas, o direito ao prazer foram conquistas da liberdade individual e beneficiaram, em proporção maior, as mulheres, aprisionadas pelas grilhetas do machismo hipocritamente ancorado à moral cristã. Fizemos esse percurso para, afinal, concluirmos que o êxtase do hedonismo se alcança com a dor? As mulheres querem é levar tau tau? Os homens querem é humilhar? A liberdade conduz à submissão?
É o problema das revoluções setoriais: arriscam a perversão por a sociedade, no seu todo, não ter acompanhado o movimento de progresso. A contradição é inevitável.
Além disso, neste caso, cometemos o desleixo de entregar a educação sexual de milhões de almas aos consultórios das revistas Maria desta vida... Não foi?
in Diário de Notícias, 17 de fevereiro de 2015
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