A semântica dos mais notáveis colunistas, o texto das agências noticiosas, as análises do Financial Times, do Le Monde, do Diário de Notícias, do El País, da Reuters ou da France-Presse, de repente, mudaram: o Syriza deixou de ser "radical" pois adotou um discurso "moderado" na crítica à "ortodoxia" da engenheira Merkel, senhora que, comentam unânimes, insiste numa austeridade "irrazoável"...
Então os "ortodoxos" não costumavam ser os comunistas empedernidos e os "moderados" os sagrados líderes da zona euro? Os "radicais" e "irrazoáveis" trocaram de lado com as eleições da Grécia? Está tudo louco? Que se passa?
Passa-se, por um lado, haver finalmente no espírito de muitos toxicodependentes do regime coragem para verbalizar o falhanço da reforma da zona euro, liderada pela Alemanha. Eles sabiam que tal caminho era uma droga, mas tinham medo do desmame. Agora o Syriza deu-lhes ânimo para falarem na reabilitação. Durará pouco.
Passa-se, por outro lado, estar já a ser montada a operação que no passado estraçalhou as esperanças do eleitorado europeu votante em partidos socialistas e sociais-democratas, vencedores de campanhas eleitorais cheias de promessas de apoio às classes trabalhadoras contra abusos ou incompetências do capitalismo: a esponja das instituições europeias absorveu o líquido reformista dessa "esquerda moderada", rapidamente diluída no detergente da real politik.
Os tapetes vermelhos dos palácios do poder, os corredores circulares dos edifícios da União Europeia, os jantares com os banqueiros mais habilidosos serão capazes de fazer o mesmo ao Syriza?...
Para já sei que na Grécia foi preciso destruir a "esquerda moderada", há décadas corrompida e corruptora dos seus princípios básicos, cúmplice e autora de excessos e atentados à economia social do seu país para, de novo, renascer alguma esperança naquele povo.
Sei também que quando vejo a esquerda moderada em Portugal no PS que, tal como o Pasok grego, tantas vezes traiu o seu eleitorado, me parece ser impossível o socialismo luso curar-se do vício da duplicidade política: defesa dos trabalhadores em campanha eleitoral, defesa dos financeiros no governo. Por isso, António Costa, ótimo político, fará como Hollande fez em França e como antes fizeram, no nosso país, Sócrates, Guterres e Soares...
Talvez haja maneira de dar um tiro à esquerda moderada portuguesa, como no domingo se fez na Grécia, para ver se ela, ferida, delira uma epifania e, milagrosamente curada, muda de natureza... Mas com os "primos" portugueses do Syriza não vamos lá: eles não querem ferir o PS, eles querem ser perfilhados pelo PS. E, por isso, não haverá esperança como na Grécia.
in Diário de Notícias, 27 de janeiro de 2015
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