Se observarmos o movimento dos astros tendo como ponto de referência o planeta que pisamos teremos toda a legitimidade para garantir, com certeza científica, tragicamente errada, que o Sol roda à volta da Terra. Diremos mesmo mais: o nosso mundo é o centro do universo. Se não mudarmos esse referencial, nada há que possa comprovar o contrário. Não é estupidez, é erro de análise.
Durante séculos, aos poucos que se atreviam a dizer que a Terra girava em torno do Sol o disparate instituído como doutrina podia até sentenciar penas de morte e excomunhões. Durante séculos, o erro de análise foi uma certeza sagrada, um dogma.
No século XXI, no Portugal tendencialmente pacóvio, todas as semanas nasce um dogma novo. Vale- -nos, apesar de tudo, não estar na moda o uso da forca ou da fogueira como solução para heterodoxias.
Vi inúmeras cabecinhas pensadoras nos órgãos de comunicação social conseguirem, na mesma exposição de ideias, atacar a chanceler Merkel e o presidente Xanana Gusmão. Ela por dizer que Portugal tem licenciados a mais e ensino profissional a menos. Ele por ter permitido a expulsão de juízes, procuradores e polícias portugueses que tomaram decisões desagradáveis ao poder político, eleito, que representa o Estado de Timor-Leste.
Se achamos que há uma ingerência (cito) “inaceitável” da senhora Merkel no direito soberano dos portugueses em decidir como devem educar os seus jovens, não podemos achar (volto a citar) “inaceitável” que os timorenses estejam fartos que a justiça do seu país seja decidida por estrangeiros. Uma indignação anula a outra, não são compatíveis.
Argumenta-se que o que se passa em Timor é um caso em que a suposta corrupção do poder político está na base da expulsão dos nossos magistrados como se, por um lado, Portugal e a justiça portuguesa tivessem condições para dar lições de moral a outros povos nestas matérias e como se, por outro lado, o valor dessas investigações tivesse alguma vez um estatuto superior ao valor da autodeterminação de um povo independente em matérias como a da aplicação da justiça.
Se a engenheira Angela Merkel conseguisse – como anda a tentar – o negócio da “cooperação” com Portugal em matéria de ensino profissional num modelo em que mandasse para cá, durante 12 anos, um exército de alemães ensinar os nossos jovens a brandir um berbequim da Bosch, em vez de rapidamente formar professores portugueses habilitados a dar autonomamente esse tipo de ensino, não acharíamos que, em vez de cooperação, estávamos antes a assistir a um processo de colonização?
Haver cooperação na área da justiça há 12 anos com Timor-Leste e, ao fim desse tempo, serem ainda estrangeiros a decidir processos importantes, com peso de Estado, não é cooperação, é colonização. A alegada falta de preparação dos atuais magistrados timorenses, a ser verdadeira, é um libelo acusatório contra essa cooperação.
Não, Portugal não é o geocentro do universo e se ajuizarmos o mundo com que nos relacionamos como se ele girasse à nossa volta estamos a cometer mais do que um erro de análise: estamos a ser ridículos.
in Diário de Notícias, 11 de Novembro de 2014
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