O senhor Newman gostava de ler escritos anónimos nas paredes: os insultos, as ameaças, os palavrões. Para ele esses rabiscos eram, cito, "um jornal secreto a publicar o que as pessoas realmente pensavam, não diluídas pelos medos da propriedade e pelos interesses egoístas".
O senhor Newman é o protagonista da primeira novela do escritor Arthur Miller. O autor de Morte de Um Caixeiro Viajante foi, por sua vez, personagem na vida da atriz Marilyn Monroe: amolgados na imprensa durante um fulminante namoro, casaram-se, sofreram cinco anos e separaram-se em 1961. Um ano e meio depois ela morreu, encharcada em álcool e barbitúricos.
O senhor Newman, o protagonista de Focus, escrito em 1945, não leria hoje paredes. Analisaria as caixas de comentários dos jornais na web, à procura da verdadeira expressão da raiva das pessoas. Não encontraria, porém, qualquer desabafo do dramaturgo de Bruxas de Salém, mesmo sob anonimato.
O senhor Newman, para saber o que Arthur Miller teria a dizer sobre a sua ex-mulher, seria obrigado a ler uma nota autobiográfica, uma frase carregada de compaixão para com o símbolo sexual das grandes telas: "O melhor dos tempos, o pior dos tempos." Encontraria também uma entrevista, feita anos depois da morte da miúda espampanante, em que, suavemente, o escritor admitia que "Marilyn era dona de uma personalidade altamente autodestrutiva". E veria uma peça de teatro dolorosa, Depois da Queda, em que o autor lambe as feridas do casamento e raciocina, denso, sobre a complexidade da união, como na época se dizia, entre o cérebro e o corpo mais desejados da América. Newman não encontraria raiva em Miller mas vislumbraria a sua alma.
O senhor Newman ficaria perplexo ao descobrir não precisar, nestes tempos modernos, de procurar textos clandestinos para descobrir o que realmente as pessoas pensam. Nem escritos nas paredes nem comentários na internet.
O senhor Newman deslumbrar-se-ia com as entrevistas aos jornais do filósofo e político Manuel Maria Carrilho sobre o fim do seu casamento com a estrela de televisão Bárbara Guimarães. Identificaria a raiva, típica dos textos anónimos, numa acusação de violência doméstica respondida com outras de alcoolismo, dependência de medicamentos, incúria maternal, mente perturbada por uma violação falhada e luta emocionada para impor o direito de ver os filhos.
O senhor Newman perguntaria: estaria aqui revelada, no preto e branco dos papéis de jornais, a alma do doutor Carrilho? Assim, crua?... O senhor Newman, talvez indeciso, de qualquer modo concluiria: o pudor está a morrer.
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