José Sócrates escreveu um livro sobre a tortura em democracia. Explica, numa das entrevistas do último fim de semana, especialmente notável entre conversas notáveis, que, excetuando decisões entradas nos domínios do risco da vida humana e do sofrimento, não é um deontologista, não segue "correntes morais dos que acham que têm imperativos categóricos e uma ética da convicção". E explicita: "A boa ação é aquela de que resulta mais felicidade do que sofrimento. É um cálculo."
José Sócrates defende, convicto, o realismo virtuoso do paradoxo dissimulado: "É preciso medir as consequências da boa ação." Por isso, como político, garante que nunca aceitaria dar uma ordem de tortura. No entanto, sobre quase tudo o resto, sobre toda a ação política quotidiana, recusa o moralismo predestinado: o que é verdadeiramente moral na política é "o cálculo do mal menor", defende. Chama a isto "ética da responsabilidade".
A narrativa de Sócrates inclui múltiplas acusações. A Pedro Passos Coelho por ter, em horas, passado da aceitação do PEC IV para a declaração pública, falsa, de que essa negociação estava a ser feita sem seu conhecimento. A Cavaco Silva por ter preparado em Belém uma operação para derrubar o Governo. A Santana Lopes, "um bandalho", por ter engendrado o caso Freeport e a propagação do boato de uma alegada homossexualidade. A Miguel Relvas por não ter mandado retirar uns cartazes insultuosos dos "pulhas" da JSD. Ao ministro das Finanças alemão, "um estupor" e "filho da mãe" que "punha notícias nos jornais contra nós". A Teixeira dos Santos, por ter desistido de o defender. Aos notáveis do PS, uns "gajos que se achavam da aristocracia". Ao Bloco de Esquerda e ao PCP, por não terem aceitado participar no Governo e terem ajudado ao seu derrube...
Penso na filosofia de Sócrates.
Talvez a boa ação, a 23 de março de 2011, fosse Passos, Cavaco, Louçã, Jerónimo, Teixeira dos Santos, Schäuble e todos os outros terem viabilizado o PEC IV. Isso teria sido moralmente correto, acha, nitidamente, o primeiro-ministro caído nesse dia. Mas a "ética da responsabilidade" do político, o imperativo ditado pela medição previsível do que produz mais felicidade do que sofrimento implicava - acharam, nessa altura, todos os outros, unânimes - o derrube do Governo. O "chefe democrático que a direita sempre quis ter", nesse dia, era o produto do mesmo "cálculo do mal menor" que tanto o inspira.
O estudante de Filosofia, sem ética da convicção e sem imperativo categórico, não devia, portanto, queixar-se do resultado final, lógico, da sua tese teórica.
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