Na quarta-feira deitei-me tarde. Dormi mal, sonhos intermitentes. Imagine-se que a dada altura vi uma televisão de ecrã a preto e branco. Nela, um antigo estúdio da RTP, decorado a reposteiro, encenava uma entrevista. Frente a frente, sentados a uma mesa fabricada pela Olaio, estavam, de um lado, os notáveis jornalistas (sem ironia) João Coito e José Mensurado e, do outro lado, António de Oliveira Salazar.
Neste anacronismo, o ditador repetia: "Quero contrapor a minha narrativa à narrativa posta a correr pelos inimigos do Estado Novo e que foi deixada vingar praticamente sem oposição."
"Fui traído. A mão por detrás do arbustro é a mão do senhor Presidente da República. Américo Thomaz nomeou um Presidente do Conselho no meu lugar. Nunca mo disse. Enviou mesmo a minha casa falsos ministros, a despacho, no fito de manter viva a ilusão."
"O Governo aceitou liberalizar certos sectores económicos e políticos. Afunda assim a Nação numa vaga de contradições internas. É urgente parar com a liberalização. É um erro político seriíssimo aqui e na Europa. O Governo meteu-se num buraco e acha que sai escavando mais. Parem de escavar!"
"A situação internacional empurrou-nos para a guerra nas colónias. Não fui eu que a quis. Com uma vaga de descolonizações nos principais países europeus e a entrega de armas aos terroristas pelas grandes potências, Portugal ou capitulava ou lutava. Muitas instituições baixaram os braços enquanto eu lutava para que Portugal não perdesse as colónias."
"A ideia de que promovi o isolamento do País é um embuste. Segui apenas uma estratégia que nos poupou à II Guerra Mundial e garantiu a independência de todo o território nacional."
"Na questão da miséria em que vive o povo e das perseguições e assassínios políticos executados pela PIDE vai aí uma história muito mal contada."
"Sou pobre. Nunca recebi um empréstimo bancário e nunca fui estudar para Paris."
Acordei, sobressaltado. O regresso de um fantasma à procura de redenção abalou-me.
Lembrei-me de políticos que, em entrevistas, tentaram salvar o seu passado: Nixon no pós-Watergate, Blair no pós-Iraque, Clinton no pós-Lewinsky, Gonzalez no pós-GAL. Todos contaram a sua narrativa. Apesar disso, justa ou injustamente, a história que ficou, a verdade e a consequência do jogo que fizeram, em nada se alterou.
José Sócrates, na quarta-feira, deu-nos a sua narrativa. Passada a espuma destes dias, passado o abalo mediático, infelizmente para ele e, se calhar, para uma boa parte da esquerda, pouco ou nada se alterará à história final.
in “Diário de Notícias”, 2/4/2013
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