Amamentar num corredor de tribunal

"Mãe Coragem" é o nome abreviado como habitualmente nos referimos a uma célebre peça de Bertolt Brecht, a "Mãe Coragem e os seus filhos". A primeira forma, a mais curta, foi a do título escolhido para encabeçar uma história, contada no número de Junho passado no boletim da Ordem dos Advogados, por José Rodrigues Lourenço, causídico de Lamego. A cena passa-se nos corredores do tribunal daquela comarca. Transcrevo:
"Certo dia, uma senhora com o seu bebé de dois ou três meses esperava atendimento do Ministério Público, buscando auxílio para que o pai fosse compelido a pagar pensão de alimentos. Via-se que era extremamente
pobre, jovem, mas com a tez já devorada pelas rugas do sofrimento e, ao que me pareceu, de inanição.
"O recém-nascido entrou em pranto estridente, denunciando agonia por fome de leite.
"A mãe, ignorando que existia leite em pó ou outro sucedâneo, desesperava, pois os seus seios mirravam da seiva da vida.
"Sendo já choro lancinante, a dr.ª Leonor Esteves, ouvindo do seu gabinete, acercou-se daquela mãe, e como estava em período de aleitação do seu primogénito logo pegou no bebé, à vista de toda a gente que entretanto se juntara, e deu o seu peito, saciando aquele infeliz imberbe".
A peça de Brecht descreve uma vendedora ambulante que, com três filhos, segue um exército em guerra, para com ele fazer lucro. Ao longo desse percurso obstinado, de 12 anos, ela acaba por ver morrer todos os filhos.
Fico a pensar no episódio de Lamego, ocorrido há duas décadas, e nos longos anos de guerra suja, intestina, que a nossa justiça entretanto leva e de onde ninguém - tal como a vendedora de Brecht - tira qualquer tipo de lucro, glória ou honra. E angustio por, nas entrelinhas das palavras do meu desconhecido dr. Lourenço, encontrar no acto de pura bondade daquela juíza - que tantas e tantas vezes sentenciou penas de cadeia - uma coisa de antigamente, algo de que apenas se pode sentir saudades, pois os tempos de hoje não estão para isso...
Não compreendi inteiramente se o título "Mãe Coragem" que o autor desta prosa escolheu se refere à juíza que decidiu amamentar o bebé, se à jovem que, de criança ao colo, procurou a ajuda da justiça. Percebi que o autor quis mostrar um exemplo da humanidade que, sente ele, tanta falta faz: "Uma sr.ª magistrada não se refugiou no seu pedestal e veio dar vida!" escreve, entusiasmado, o dr. Lourenço... Mas se o título se refere à jovem mãe é de uma ironia acusatória violentíssima: afinal, hoje em dia, quem, sem dinheiro, tem coragem, como aquela mulher teve, para pedir ajuda ao Ministério Público?!
in Diário de Notícias, 24 de Agosto de 2010

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