"Estou tramado!", pensa o procurador

Não é obviamente verdade que o Procurador-Geral da República tenha poucos poderes. Nem que os magistrados que investigaram o Freeport não tiveram tempo para interrogar José Sócrates. Nem que as perguntas que ficaram por fazer ao Primeiro-ministro fossem irrelevantes. Nem que Cândida Almeida e os seus subordinados se entenderam às mil maravilhas. Nem que o grande problema do Ministério Público em Portugal seja o seu sindicato. Nem que o sindicato do Ministério Público seja uma associação de anjinhos.
É obviamente verdade que o caso Freeport foi instrumentalizado - quer para liquidar José Sócrates, por um lado, quer para liquidar a investigação a José Sócrates, por outro.
Existe um problema de pressão política às investigações em Portugal - há excesso abusivo (com sinais
partidários contrários) quando o Ministério Público investiga gente do poder governativo; há defeito cúmplice (e aqui com todos os sinais partidários) quando essa mesma instituição revela, sem consequências (e acumulando carreiras com notas de "Muito Bom" e "Bom"), tantos e tantos casos de pura incompetência ... Mas também ninguém quer imaginar, face às insanidades a que assistimos, o que seria o Ministério Público se não tivesse, de todo, qualquer tipo de prestação de contas.
É totalmente verdade que o Pacto de Justiça do PS e do PSD não resultou, embora também seja verdade que, pela primeira vez, e graças a esse pacto, se cumpre em Portugal o básico princípio de informar os arguidos, logo nos primeiros interrogatórios, do que há contra eles.
Já todos percebemos que as receitas que se pressagiam - novas leis, novos códigos, novas caras - não vão resolver os problemas. Porquê? Porque o problema do Ministério Público é só um: estar preso na teia das contradições de quem luta pela conquista ou manutenção do poder executivo. Leia-se: PS, PSD, às vezes PP. Tudo o resto - incluindo a luta intestina na corporação - decorre desse facto.
Talvez alguma coisa começasse a mudar se a nomeação do Procurador-Geral da República não dependesse do Governo e de um negócio particular entre PS e PSD, mas obrigasse a um consenso e a um acompanhamento da Assembleia da República no seu todo. Mas mesmo essa proposta, que já vi avançada por aí, seria apenas um pequeno começo... É que no próximo dia em que um procurador tiver de tratar de um caso que, de alguma forma, envolva um primeiro-ministro - Pedro Passos Coelho, por hipótese -, não será por isso que deixará de pensar, inevitavelmente, o seguinte: "estou tramado!". E, nesse momento, tudo voltará a descambar.

in Diário de Notícias, 17 de Agosto de 2010

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