A morte de António Dias Lourenço

Estava na redacção do Avante!, com a Ivone Dias Lourenço, quando olhei para a janela. Frente ao prédio da Rua Soeiro Pereira Gomes, em Lisboa, vi a descer, por uma ladeira de terra batida então frontal à sede do PCP, o António Dias Lourenço. "Está ali o teu pai!", alertei. A resposta na cara da Ivone misturou pasmo, preocupação e irritação: "Mas o que é que ele está a fazer?!"
Um dos olhos de Dias Lourenço estava tapado por uma gaze, o que explicava as razões da filha: Ele fora nessa manhã para o Hospital de Santa Maria, ali perto, fazer uma cirurgia à vista. O internamento previsto era de 24 a 48 horas. Mas, assim que acordou da anestesia, raspou-se, a pé.
Não foi uma fuga heróica, como a do forte de Peniche em 1954, mas não deixou de ser algo temerária para quem já contava 70 e tal anos de idade... "Ó Ivone, estás farta de saber que não gosto de ficar preso!", foi a
única explicação que ouvimos dele, meio a sério, meio a brincar.
Este amor extremo pela liberdade é bem capaz de só se entender em quem, como Dias Lourenço, esteve 17 anos na cadeia por razões políticas. Quando os adversários do PCP procuram uma explicação para a sobrevivência do partido, não procuram a resposta onde deviam: na herança deixada por homens como este, suficientemente poderosa para preservar o essencial do seu projecto político ao enorme impacto negativo da revelação dos crimes, desumanidades e injustiças cometidos em nome do comunismo (para não falar do óbvio efeito do outro lado da balança - o dos crimes, desumanidades e injustiças que o capitalismo, por seu turno, comete).
Homens como Dias Lourenço podiam ser na vida o que entendessem ser. Faltava-lhes inteligência e determinação? Não. Faltava- -lhes capacidade de organização ou persistência? Não. Faltava-lhes poder mobilizador e agregador? Não. Faltava-lhes voluntarismo ou empenhamento individual? Não.
Estes homens podiam ter decidido ser multimilionários, empresários, construtores civis, cientistas, engenheiros, juristas, professores, académicos, cardeais, líderes dos partidos burgueses, qualquer coisa. Mas entenderam que as suas ambições pessoais deviam coincidir com as ambições colectivas dos explorados. Por isso decidiram ser, "apenas", revolucionários. E realizaram-se assim.
Quando olhava para Dias Lourenço, eu via o Homem Novo... sim, esse mito moral da mítica sociedade comunista não é afinal uma quimera ridícula: corporizou-se nele e noutros como ele. Em Dias Lourenço eu vi, sempre, um revolucionário feliz... E aí, ainda hoje, está a força do PCP.

in Diário de Notícias, 10 de Agosto de 2010

Sem comentários:

Enviar um comentário