Será que vão prender Sócrates?

No metropolitano de Londres é célebre o aviso oral mind the gap para recomendar aos passageiros precaução com a separação que há entre a carruagem e o cais. Uma tradução possível para a frase é "cuidado com fosso". O mais burro dos cidadãos percebe a ideia num segundo.
Aqui há uns dias, na estação do Marquês de Pombal, ouvi pela primeira vez uma réplica portuguesa. Era tão comprida que nem consegui decorar. Pareceu-me isto: "Esteja atento, nas entradas e nas saídas, ao intervalo entre o comboio e o cais..." Bolas! À quarta palavra já me perdi, já não sei o que me querem dizer, já vou, aliás, na escada rolante. Este vício talvez seja indelével ao carácter português. Tem um nome: complicador.
O complicador mais relevante da última semana foi ligado quando José Sócrates utilizou, na Portugal Telecom, a golden share (vejam como esta expressão, simples, teria mesmo de ser inglesa...). O primeiro-
ministro opôs-se assim à venda à Telefónica de Espanha de uma participação da PT na brasileira Vivo.
Essa acção foi politicamente apoiada por todos os partidos menos o PSD. Mas, logo a seguir gestores, banqueiros, políticos sociais- -democratas e jornalistas ligaram o complicador.
Começaram com a ameaça de que Bruxelas e os seus tribunais vão declarar a coisa ilegal. Talvez. E depois? Acontece o quê? Prendem José Sócrates? Expulsam-nos da União Europeia?
Agitou-se, através de Ricardo Salgado, o papão de que a Telefónica fará uma OPA sobre a Portugal Telecom. Isso seria assim tão mau? Pelo menos acabavam-se os empregos para os Ruis Pedros Soares desta vida... E o nosso sistema de regulação de concorrência permitia-o? E é seguro que a Telefónica não será ela própria sujeita a uma OPA de outra empresa ainda maior?
Explanou-se também a teoria de que estariam a ser violadas santas regras de mercado quando, afinal, se aplicou precisamente uma regra que o mercado aceita há décadas, uma regra estipulada pela justiça portuguesa, uma regra que todos os accionistas da Portugal Telecom conheciam muito bem e com a qual conviviam pacificamente, apesar do desagrado de Bruxelas.
Há uma coisa muito clara que ficou dita: o poder político de Portugal (menos o PSD) não quer que a Telefónica compre a parte da PT na Vivo. E isto, que é simples, precisava de ser dito ao mundo, à Europa, a Espanha, aos portugueses, ao Banco Espírito Santo e a todos os outros accionistas da PT. Sócrates fez isso e apenas isso. Foi um aviso curto e simples. Foi um mind the gap. Se resulta ou não, isso é outra história.

in Diário de Notícias, 6 de Julho de 2010

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