Um miúdo de galochas e camisola interior contempla, plácido, sentado num tijolo, a persiana daquele que há minutos era o seu quarto. A janela espreita cá para fora, como um olho improvável, que a casa está lá em baixo, soterrada. Um corpo escondido por um lençol branco é levado sem vida, sem cor, numa maca carregada por bombeiros de capacete garrido, amarelo. Um braço estendido tira das águas revoltas um homem que luta contra o afogamento. Há excesso de imagens comoventes nas tragédias dos dias de hoje.
Procuramos sempre culpados. Antigamente era a fúria divina provocada pela nossa suposta vida licensiosa. Agora, que Deus já não tem fúrias e os pecados da carne são uma irrelevância moral, racionalizamos a hecatombe com a denuncia do pecado da imprevidência: sofremos, morremos, perdemos o que conquistámos à vida porque construímos onde não devemos, porque manipulamos a natureza a golpes de toneladas de betão e ferro, porque desafiamos o clima com agressões de fumo, gasolina e CO2. Há excesso de má consciência na civilização tecnológica dos dias de hoje.
Esquecemos a trica política. Guardamos o rancor para outro dia. Abraçamos o maior inimigo. Prometemos corrigir os erros do passado. Inventamos actos solidários de homenagem aos que foram embora. Destinamos milhões para pagar prejuízos. E vamos à missa. Há excesso de rituais normalizados nos dias políticos de hoje.
Nada há para dizer e, no entanto, ninguém pára de falar. Falou o Presidente. Falou o primeiro-ministro. Falou o líder do Governo Regional da Madeira. Falou o ministro. Falou o homem da Protecção Civil. Falou o comandante dos bombeiros. Falou o comentador profissional. E os jornalistas não se calam, horas e horas e horas a fio. Há demasiadas palavras inúteis na linguagem destes tempos que correm.
Maldita profissão esta, que me obriga, sem respeito pela morte, a somar as minhas palavras, mais palavras inúteis, ao ruído insuportável que me cerca...
Boa Tarde,
ResponderEliminarEste não é o melhor local para isto, mas gostava de ter algum contacto seu, uma vez que gostava de convida-lo para uma conferência na Universidade do Minho.
Se possível diga-me algo para zemraposo@gmail.com
Cumprimentos,
José Raposo