A trabalheira de criar filhos

Se fui, sou ou virei a ser um pai razoável só a minha filha soube, saberá ou virá a saber. Seja como for, eu nunca lhe perguntei, nem lhe pergunto, nem lhe irei perguntar alguma coisa sobre esse assunto, não vá o diabo tecê-las...

Mas sei que lhe mudei dezenas de vezes as fraldas. Sei que andei quilómetros em círculo, às escuras, horas e horas, carregando-a no colo à espera do bendito sono dela. Sei que acordei milhares de vezes, assustado, e fui a correr à sua cama para acabar com o que a fazia chorar. Sei que lhe limpei um milhão de vezes a boca suja de papa. Sei que lhe segurei a mão quando, pela primeira vez, ela conseguiu andar. Sei que a ensinei a lavar as mãos com sabonete. Sei que arranjei um truque para ela deixar de dizer “mánica fotogáfrica”. Sei que a segurei pelos pés e a virei ao contrário para ela rir às gargalhadas. Sei que inventei uma maneira de brincarmos na rua, a passear, que era só nossa. Sei que a levantava até ela lá chegar e a deixava marcar os códigos e tirar o dinheiro das caixas multibanco, para desespero dos coitados que ficavam atrás de mim, na fila, à espera. Sei que lhe expliquei o que era a morte quando ela perguntou o que acontecera a um primo nosso. E sei que me lembro disto tudo, do tempo em que ela foi bebé, e que ela agora, quase uma mulher, não se lembra de quase nada.

Enquanto os nossos filhos são pequeninos nós temos essa grande vantagem sobre eles: tudo o que eles nos deram é mesmo só nosso, toda essa memória feliz ficou guardada cá dentro e mais ninguém, nem eles, sabem voltar a vê-la, ouvila, senti-la ou cheirá-la. É por isso que para nós, os afortunados da vida, os favorecidos pela sorte, não houve sacrifício, cansaço, insónia, confusão, medos ou gritos. Houve, apenas, sorrisos, sorrisos e sorrisos.

in 24horas, 22 de Julho de 2006

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