O senhor doutor tem prioridade

É verdade que quase todos os dias encontro muito doutor que é estúpido. E muita gente sem estudos que é inteligente, culta e informada. Mas, nos tempos que correm, é praticamente suicídio profissional não tirar uma licenciatura e os doutores, mesmo estúpidos, estão em larga vantagem.

Vou confessar-vos uma coisa: eu não sou doutor... Mas ando a enganar toda a gente há uma data de tempo. Um dia, aí há uns 10 anos, prosseguia eu uma feliz brilhante carreira de figura apagada do jornalismo (sorte do jornalismo, diga-se), quando, numa recepção de um edifício, um segurança que me ia dar acesso a um entrevistado se virou para mim e exclamou: “Faça então o favor de entrar, senhor doutor!”. Fiquei tão extasiado que nem consegui pronunciar palavra.

Andei com esse peso na consciência durante uns tempos até que, ao telefone, alguém do outro lado voltou a usar a mágica formulação: “Ó sôr doutor, então não vê que...”. Dessa vez informei: “Eu não sou doutor”. Foi a última vez que fiz tal disparate. Senti-me, em segundos, a passar de cavalo para burro e do outro lado veio uma onda de petulância e falta de respeito que nunca mais admiti a alguém.

Ser doutor tem muitas vantagens: a primeira é ter estudado, ter ganho instrumentos para um pensamento estruturado, usar intuitivamente um método de análise, ter maior facilidade em usar a cultura adquirida. Mas ser doutor no nosso país ainda é mais do que isso: é ter estatuto, é pertencer à aristocracia, é ser da elite, é ter prioridade.

Por isso, caro leitor, não siga o meu exemplo nem o das sete pessoas que são objecto do tema de capa desta revista: faça-se doutor e goze muito com isso.
in 24horas, 11 de Junho de 2005

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