Ninguém quer saber das irmãs que fazem bolos

No Parlamento perguntaram a Pedro Queiroz Pereira: “Poderá dizer-se que se tivesse chegado a acordo com Ricardo Salgado no conflito sobre o controlo da Semapa não teria feito a denúncia sobre o Grupo Espírito Santo ao Banco de Portugal?” O até então descontraído industrial fechou o rosto, refletiu numa pausa e admitiu: “Poderá dizer-se que não. Não teria feito a denúncia.” Esta é a confissão da amoralidade nas alianças e nos conflitos desse mundo que a comissão de inquérito ao caso BES nos dá a conhecer: quase nenhum inquirido, na realidade, quer saber muito do respeito pela lei, das perdas dos pequenos acionistas, da honra pessoal ofendida ou do destino das pobres irmãs Salgado que fazem bolos à noite, coitaditas...
Quando Ricardo Salgado aparenta, em dez horas de audiência extenuante, uma mistura de fresca inteligência discursiva com uma, literalmente, inacreditável ignorância sobre a criação do buraco financeiro que acabou por destruir o império familiar que liderou, está a guiar-se por essa amoralidade.
Quando José Maria Ricciardi atira à cara de Marcelo Rebelo de Sousa as férias passadas na mansão de Salgado no Brasil para responder a críticas e a “mentiras” ditas pelo comentador, está a guiar-se por essa amoralidade.
Quando Amílcar Morais Pires, o ex-CFO do BES, assegura que não era o número 2 do banco e que “havia outras pessoas muito importantes a trabalhar no BES” para apontar o dedo a José Maria Ricciardi, está a guiar-se pelo mesmo padrão amoral.
Quando o presidente da KPMG Portugal, Sikander Sattar, que lidera também a KPMG Angola, recusa falar aos deputados da situação do BES Angola porque este está “sujeito a leis e regulamentos angolanos” mas, logo a seguir, defende-se com a garantia dada pelo Estado angolano para explicar o facto da sua consultora não ter referenciado a ausência de uma provisão cautelar no BES contra a exposição à dívida do BES Angola está, igualmente, a guiar-se pela mesma amoralidade.
É impressionante ver a naturalidade com que esta gente encara as relações e as atitudes nos negócios mais estranhas, mais inconscientes, mais irresponsáveis, mais pueris, mais falsas, sem sequer se darem conta das lesões que criam na sociedade, em indivíduos, em trabalhadores, no Estado, quando desbaratam, desviam, não declaram, perdem e, talvez, roubem milhões e milhões e milhões de euros.
É um comportamento amoral. Eles querem saber de si próprios, do seu poder, do seu estatuto, dos seus negócios. Estão-se nas tintas para nós, desprezam-nos, pobretanas, que nem uns míseros dez mil euros por mês conseguimos ganhar... Nenhum deles quer saber das irmãs que fazem bolos.
in Diário de Notícias, 16 de dezembro de 2014

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