Conheço um condenado à morte pelo Estado


Uma pessoa que conheço, que estimo, com quem já trabalhei, recebeu uma pena de morte: uma velha hepatite C degenerou em cirrose.
Os médicos deram-lhe, no entanto, forma de escapar à cruciação: novos medicamentos prometem a cura de, pelo menos, 90% dos casos e em apenas três meses.
O Infarmed e o Ministério da Saúde, porém, voltaram a confirmar a condenação: o processo burocrático que define as comparticipações do Serviço Nacional de Saúde não está concluído. Por isso, o Estado não fornece ainda esse medicamento aos doentes.
"Eu pago!", pensou ele, na inocência dos espíritos livres. "São 48 mil euros", decretou o mundo real, em que a liberdade só é garantida para os ricos... mas até estes, se estivessem na mesma situação, enfrentariam o embaraço de todo o sistema, que não saberia como vender um fármaco hospitalar com processo de aprovação ainda pendente em Portugal, apesar de em novembro a Agência Europeia do Medicamento o ter recomendado para toda a União. Mas a questão já nem se põe ao meu antigo camarada de trabalho, pois a economia familiar não arranja assim 48 mil euros. O pagamento de uma caução que substituisse a pena capital está, em suma, fora de questão.

O relógio, imparável, está a contar. Para ele e, noticia o Diário de Notícias de quinta-feira passada, para outras 80 pessoas cujas vidas estão nas mãos do ministro Paulo Macedo, dos secretários de Estado Leal da Costa e Ferreira Teixeira e, ainda, dos dirigentes do Infarmed Eurico Castro Alves e Helder Mota Filipe, que superiomente esperam saber a confrontação (cito o Infarmed) "entre o valor terapêutico acrescentado e o impacto para o Serviço Nacional de Saúde" desses remédios, o que, na minha leitura, é dizer que se escolhe entre tentar salvar aquelas pessoas e gastar 4,5 milhões de euros - quase o mesmo valor que o Estado pagou numa única semana a assessores e consultores de coisas vagas, como revelou ontem o jornal i.
Não quero um Estado manipulado pela indústria farmacêutica. Mas também não quero um Estado que ponha na mesma balança uma vida que se esvai em poucos meses e, no outro prato, um lento processo burocrático para pesar se 48 mil euros valem mais do que uma pessoa. Não é esse o estágio civilizacional que atingimos.
O protagonista desta história está, para já, condenado à morte. Pode ser que o sistema ainda o salve, a ele e aos outros 80. Mas, imagino, se acontecesse o pior, se eu fosse juiz e se um processo por homicídio involuntário contra Macedo, Costa, Teixeira, Alves e Filipe, por causa da falta destes remédios, me chegasse à secretária, que decidiria eu? Que decidiria qualquer um de nós?

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