Um dia Ruben de Carvalho iniciou o que, durante alguns anos, vigorou como ritual intermitente. Na sala de reuniões do Avante! o então chefe de redação do jornal, a Ivone e a Noémia montaram na grande mesa umas fatias generosas de presunto e pão alentejanos, chouriços transmontanos, queijo serrano e vinho verde minhoto - Alvarinho, uma bebida fantástica e, para a função pretendida, uma piada óbvia.
Chamou-se o Álvaro propriamente dito à surpresa de aniversário e passámos uma hora ou duas a brincar às futilidades, beberricando o diminutivo, fresco.
"Brincar às futilidades", disse eu? Disse e é verdade. Mas as 15 pessoas da redação acabavam depressa por tentar encurralar o secretário-geral do PCP na armadilha da informalidade, para o confrontar com uma qualquer preocupação séria.
Uma dessas petiscadas coincidiu com a chegada à redação de umas revistas norte-coreanas. Em cada página, em bom papel couché, havia sempre duas ou três fotografias do "Grande Líder".
Kim Il Sung apontava para um pedaço de terra sacholada por um agricultor sorridente e a legenda explicava: "O Grande Líder orienta a produção de vegetais". Kim Il Sung espreitava para dentro de uma cova, rodeado de aldeões sorridentes, e a legenda explicava: "O Grande Líder verifica a profundidade do novo poço da aldeia". Kim Il Sung gesticulava frente a um alto-forno para um grupo de operários, sorridentes, e a legenda explicava: "O Grande Líder ensina o melhor processo de fabricar o aço". Kim Il Sung gesticulava para um cientista de bata branca, sorridente, e a legenda explicava: "O Grande Líder determina a fórmula de um novo medicamento"...
Lembro-me de a exposição do ridículo na mesa terminar em algo como isto: "Quando lá fui levaram--me até uma escadaria para a audiência. Era enorme, empinada, decorada com alcatifa vermelha que parecia desaparecer no céu. Pediram-me para subir. Acho que eram mais de mil degraus. Lá em cima, no topo, encontrei, sozinho, sentado num trono imponente, o Grande Líder... Triste, triste..."
Nesse dia, entre dois copos de Alvarinho, aprendi com Álvaro Cunhal mais uma das mil e uma formas de matar o ideal comunista: o culto da personalidade. Nele, aliás, testemunhei a teimosia inúmeras vezes insuportável: nem o mais modesto cartaz do PCP ou da CDU deveriam reproduzir uma fotografia sua. As exceções contam-se pelos dedos. Isto num homem que tinha orgulho em si próprio, quase de certeza um pouco de vaidade, era ainda mais notável.
Nem me atrevo a imaginar o que ele bramaria contra algumas das mais sinceras e bem intencionadas homenagens dos últimos meses...
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