Andava desconfiado de que alguns dirigentes da Igreja Portuguesa e uma parte da elite católica estavam embaraçados com o que o Papa Francisco dizia. O mote dessas reações, sempre que do Vaticano saía uma frase para a primeira página dos jornais, foi repetidamente este: "Mas a Igreja sempre disse isto. Não há aqui novidade. O Santo Padre limita-se a sublinhar algo que já há muito faz parte da nossa doutrina."
O entusiasmo mediático com Francisco é assim recebido, por estas pessoas, com uma cerebral e analítica contextualização, contrastante com a verve emocional com que os mesmos protagonistas popularizaram e glorificaram as intervenções de João Paulo II.
Essa minha desconfiança reforçou-se com a notícia elaborada pela Agência Ecclesia sobre o "Evangelii Gaudium", conhecido na semana passada, escrito pelo Papa.
O texto do órgão de informação da Igreja Católica enfatiza que esta "exortação apostólica refere-se a uma 'conversão do papado' e questiona uma 'centralização excessiva, que complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária'".
O Papa, conta a agência, "repete o desejo de 'uma Igreja pobre', 'ferida e suja' após sair à rua'". "Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos", diz Francisco, citado nessa notícia, que continua: "A exortação sublinha a necessidade de fazer crescer a responsabilidade dos leigos, mantidos 'à margem nas decisões' por um 'excessivo clericalismo', bem como a de 'ampliar o espaço para uma presença feminina mais incisiva'".
O Papa, refere o despacho, já no fim, "denuncia o atual sistema económico, preso a um 'mercado divinizado', e lamenta os "ataques à liberdade religiosa'". Francisco, conclui o texto, "deixa claro que a Igreja não vai mudar a sua posição na defesa da vida e pede ajuda para as vítimas de tráfico e de novas formas de escravidão".
Tirar poder ao topo da Igreja, torpedear a ostentação ou aumentar a intervenção das mulheres e dos leigos já me parece ser algo à beira do revolucionário. Mas que dizer de partes que a notícia da Ecclesia não releva, citadas por todas as agências noticiosas e por todos os jornais do mundo, quando se lê, no link do site da agência, o texto completo que Francisco escreveu?
Deixo só uma frase para demonstrar as razões da minha desconfiança: "Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa." Esta clareza do pensamento de Francisco não é nova para a Igreja, certo, mas é, aposto, a que incomoda mais nestes tempos decadentes.
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