Porque estamos com esta crise?… Foram os economistas, estúpido!


A história do combate ideológico e académico entre os dois economistas mais influentes do século XX é também a demonstração de como os economistas não escapam às culpas pela crise que vivemos hoje

Texto publicado no suplemento cultural do Diário de Notícias, Quociente de Inteligência,  em 27 de Outubro de 2012

Livro analisado: “KEYNES/HAYEK - O Confronto Que Definiu a Economia Moderna” por Nicholas Wapshott, ed. DomQuixote, 400 páginas, ISBN: 978-972-20-5979-1


JOHN MAYNARD KEYNES influenciou inúmeros governos para que não deixassem as economias dos seus países entregues aos caprichos e desumanidades do mercado. Exortou-os a utilizarem, em alturas de crise, uma intensa política de investimentos públicos, sem dar importância aos aumentos dos défices dos Estados, para relançarem as economias através da criação maciça de empregos. Este pragmático, que retirou aos socialistas o monopólio da ideologia de intervenção estatal na economia, com o fito deliberado de vencer o comunismo e melhor desenvolver o capitalismo, foi um homem que fez fortuna com investimentos pessoais certeiros – que lhe exigiam estudo e esforço diário – e, apesar de ter sido contratado com frequência para funções em organismos governamentais britânicos, recusou várias vezes receber salário do Estado.

Friedrich Hayek defendeu toda a vida que a liberdade e a justiça social só se alcançam se o mercado se regular a si próprio através dos seus próprios equilíbrios e das suas contradições. Para ele as crises devem resolver-se naturalmente e isso acontecerá mais facilmente se o Estado for mínimo e se quase tudo puder ser gerido por companhias privadas – educação,saúde, transportes, comunicações e, até, a emissão de moeda. Admitiu algumas exceções a estas regras: em primeiro lugar a defesa, claro, e (coisa que os seus adeptos muitas vezes parecem esquecer) seguros de saúde e subsídios de desemprego universais proporcionados pelo Estado. Este arauto da economia capitalista livre do controlo estatal, que tornou a defesa do mercado desregulado uma ideologia e um modelo utópico de sociedade, nunca conseguiu ter outra fonte de rendimento relevante que não fosse a do seu salário de académico universitário, várias vezes, em certos períodos dasuavida, pago no todo ou em parte por fundos governamentais. Também recebeu metade de um Prémio Nobel.

Quando ouvimos o antigo primeiro-ministro português José Sócrates(1) dizer numa conferência em Paris que “para pequenos países como Portugal e Espanha pagar a dívida é uma ideia de criança”(2), estamos a ver alguém que faz da sua interpretação, talvez peculiar, de Keynes, um credo e uma práxis política. Quando o atual primeiro-ministro português, Pedro Passos Coelho(3), afirmou, era líder da oposição, que a Constituição da República Portuguesa não serve o País porque “ainda prevê a planificação e planeamento da economia”(4), estamos perante um líder que encontra modernidade e anseia pela aplicação em Portugal de grande parte das ideias de Hayek que inspiraram, nos longínquos anos 70 e 80,Margaret Thatcher(5)eRonald Reagan(6).

Lorde Keynes (1883-1946) é considerado o mais influente economista ocidental do século XX. Foi discípulo muito próximo de Alfred Marshall(7), que definiu as bases do enquadramento analítico desta ciência. Keynes,que publicou imenso, combateu a chamada economia clássica e definiu inúmeros conceitos novos como o da procura agregada, a da oferta ou da produção agregada, para analisar as situações económicas dos países e que acabariam por determinar o surgimento, já depois da sua morte,da macroeconomia como instrumento de medição da saúde financeira, comercial e industrial dos países, em contraponto aos processos analíticos microeconómicos, usados pelos economistas clássicos, focados no estudo do comportamento individualdas empresas e dos indivíduos. Muitos instrumentos de gestão económica utilizados hoje nos Orçamentos dos Estados, como a medição do PIB, por exemplo, devem-sea ele ou a evoluções de trabalhos dele.

Friedrich A. Von Hayek (1899-1992) ganhou o Prémio Nobel da Economia, com Gunnar Myrdal(8), em1974. Nasceu e estudou em Viena, o berço da chamada “economia clássica”, mas foi em Inglaterra e, mais tarde, nos Estados Unidos que se notabilizou. Opôs-se à gestão macroeconómica, ao estilo de Keynes, por achar ser impossível gerir bem, de forma centralizada, a quantidade enorme de informação que uma economia gera e processa, ao contrário dos indivíduos, que administram melhor a fração dessa quantidade de informação que lhes diz diretamente respeito. Defende também que uma sociedade só pode ser livre se o mercado for livre, que ali está a base de toda a liberdade individual e coletiva, e que o Estado só deve intervir em áreas e de formas muito restritas. Inspirou as políticas monetaristas utilizadas pelos governos economicamente liberais para controlar défices e estimular os investidores privados, em oposição às políticas de investimento público que dominaram as políticas estatais no pós-guerra.

Ao lermos a história do confronto intelectual destes dois colossos do pensamento económico, encontramos explicação para muitas situações que estamos a viver hoje em dia. Os governos, ao longo do século XX, foram-se afastando cada vez mais de tomadas de decisões que não tivessem um suporte carimbado como “científico” na área da economia,mesmo que esse carimbo não passasse de uma falácia.

O número e o peso da influência dos economistas de cada uma destas correntes sobre os decisores políticos não pararam de crescer, sobretudo depois do fim da Segunda Guerra Mundial. O problema é que no meio científico e académico as teorias económicas rivalizam em incerteza e inexatidão com a incerteza e inexatidão das práticas dos políticos que se guiam pela mera intuição, apesar dos evidentes e gigantescos avanços que a ciência económica obteve, antecipando várias vezes a evolução das próprias sociedades, mas falhando amiúde as previsões mais básicas e necessárias para evitar crises graves.

Nunca as duas teorias económicas prevalecentes no Ocidente, as de Keynes e Hayek –ambas devedoras de alguns fundamentos teóricos do marxismo, mas feroz e militantemente opositoras do comunismo –, foram aplicadas na sua“forma pura” e é frequente ver políticos ideologicamente comprometidos com um dos lados serem campeões da aplicação de receitas da outra fação .

Com o eclodir da crise do subprime nos Estados Unidos, em 2008, e o caminho para a depressão generalizada que se seguiu nos países mais ricos do planeta, a síntese dos pressupostos teóricos de Keynes e Hayek, que, com doses e nuances distintas quer nos Estados Unidos quer na Europa constituíam as bases da governação económica, foram, e ainda estão, seriamente postos em causa. Afinal, qualquer pessoa que leia esta história, brilhantemente contada por Nicholas Wapshott, e acompanhe a sucessão de crescimentos e depressões que a aplicação da steorias de Keynes e Hayek provocaram, olha para o estado de crise profunda e duradoura a que chegámos e não pode deixar deglosar, ironicamente, um dos lemas de campanha do antigo presidente Bill Clinton: “Porque estamos em crise? Foram os economistas, estúpido!”(9)

1. O CONFRONTO COMEÇA COM QUATRO CONFERÊNCIAS ABORRECIDAS


O “confronto que definiu a economia moderna”, como subtitula o livro Keynes/Hayek, tem o verdadeiro início, depois de algumas escaramuças, marcado pelo autor, Nicholas Wapshott, nesta data(10): Maio de 1931. É nessa altura que Hayek prepara umd eliberado e espetacular ataque ao Tratado sobre o Dinheiro que Keynes levara seis anos e dois meses a escrever, em dois volumes espessos, e que saíra em Dezembro de 1930.

Hayek viera para Inglaterra proveniente da Áustria, onde penara num país atirado para a miséria e para a inflação galopante (experiência que terá sido determinante para as suas posições teóricas) em consequência da I Guerra Mundial e das duras penalizações económicas que os países vencedores impuseram aos países vencidos. O austríaco já sabia quem era Keynes, uma celebridade com quem simpatizava e cuja fama ultrapassava o mundo académico britânico por ter escrito, em 1919, As Consequências Económicas da Paz, em que protestou veementemente contra as pesadas reparações de guerra impostas aos países vencidos, visionando as condições para a instabilidade política e a ascensão ao poder de políticos extremistas que poderiam fazer eclodir uma outra guerra mundial.

Acertou em cheio, como veio a verificar-se com a ascensão do nazismo na Alemanha. Hayek viera convidado para Inglaterra em janeiro de 1931 para dar quatro conferências na London School of Economics (LSE) baseadas no seu livro O “Paradoxo” da Poupança, que tinha a intenção de revelar à academia britânica a escola austríaca de economia e iniciar um processo que acabasse com a hegemonia académica de Cambridge, onde pontifica, no Kings College, o seu futuro rival Keynes.

Fundada por Carl Menger(11) nos anos 70 do séc. XIX, a chamada escola austríaca opôs-se, ao longo da sua história, a várias teorias dominantes na Economia.

Na altura da partida de Hayek para Inglaterra,onde a academia britânica ignorava os contributos destes intelectuais, a chefia da escola era dividida entre Bohm-Bawerk e VonWeiser(12). O primeiro alargou a análise da avaliação dos comportamentos do consumidor à explicação dos custos, dos preços, das taxas de juro, do crescimento económico e da análise do investimento de capital. O segundo teorizou sobre a importância dos processos de formação dos preços para, a partir daí, obter informações sobre todas as condições económicas, o que influenciou diretamente as ideias de Hayek.

As conferências correram suficientemente bem para Hayek, embora muitos dos que assistiram se queixassem da complexidade da sua explicação, agravada pela pronúncia alemã muito carregada e por uns misteriosos triângulos que ele desenhava no quadro para tentar ser mais ilustrativo e rigoroso. Acabou, no entanto, por ficar como professor na LSE, uma vitória pessoal. Falhou, no entanto, um dos objetivos que lhe tinham sido pedidos pelos dirigentes da escola: provocar suficientemente Keynes para obter deste uma reação. A oportunidade surgiu como envio para publicação na revista Economica, editada pelo próprio Keynes, de um artigo crítico ao Tratado.

A grande preocupação central de Keynes era o desemprego e a miséria a ele associada, que, acreditava, dava espaço ao crescimento do socialismo e do comunismo. Ele pôs em causa o pressuposto do seu mestre, Alfred Marshall, segundo o qual, ao longo do tempo,uma economia acabaria por atingir sozinha o equilíbrio e o pleno emprego. O pupilo, já em 1923, quando as taxas de desemprego na Grã-Bretanha atingiam11,4%, insistia na visão de que a taxa de juro deveria ser reduzida através da emissão de obrigações do governo, o desemprego deveria ser combatido através de investimentos enormes em obras públicas, mesmo que se revelassem errados, e a desvalorização da libra devia ser adotada sempre que a situação o exigisse. Mesmo se criasse momentaneamente enormes défices ao Estado, o crescimento da economia resultante daquelas medidas iria proporcionar cobranças de impostos suficientemente grandes para resolver a questão. Ao longo da vida, sempre que uma crise financeira ou económica ocorria, ele sugeria, sistematicamente, este tipo de intervenção, com algumas adaptações e melhorias. Mas, atenção, recomendava igualmente que em tempos de abundância económica os Estados deixassem de influenciar a economia. Os governos quase nunca lhe davam ouvidos. O crash da bolsa de 1929 mudaria isso.

Para Hayek o grande problema era a inflação, ela é que criava a miséria e o desemprego. Se o Estado se pusesse a aumentar a sua despesa causaria, pensava, um aumento grave da inflação. Hayek rejeitou, desde cedo, ser impossível estabelecer relações matemáticas que permitissem o controlo entre a quantidade total de dinheiro, o nível geral dos preços e a quantidade total de produção. As escolhas que os indivíduos fazem é que mandam: o que compram, o que vendem, o que produzem, o que negoceiam, o que investem, os empréstimos que contraem. Essas escolhas são tantas e tão diversas, que não podem, na prática, ser medidas. Para as analisar teríamos não de nos basear em dados quantitativos mas sim em avaliações matemáticas de abordagem qualitativa.

Daqui, Hayek parte para outro raciocínio crítico a todas as formas de intervenção no mercado, mesmo as mais conservadoras e tímidas, por irem perturbar os equilíbrios naturais da economia, com consequentes efeitos desastrosos de que o desemprego era uma das expressões. Por exemplo, fazer aumentar artificialmente os níveis de produção tem como consequência uma queda do investimento e, consequentemente, origina uma depressão.

Nos dois artigos que enviou para a revista de economia, Hayek destrói, ao nível da rudeza, todo o pensamento de Keynes publicado no Tratado. Este defende-se violentamente e ataca os Preços e a Produção, o livro que reunia o teor das conferências que levaram Hayek a Londres. O debate manteve-se ao longo de muitos anos e mobilizou adeptos e apoios académicos de ambos os lados, de uma forma invulgarmente apaixonada.

2. UMA TEORIA GERAL QUE QUASE DESTRUÍA HAYEK


A dada altura, Keynes entrega a condução do debate aos seus discípulos e concentra-se na elaboração da sua obra principal e mais influente: aTeoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro (1936), que não recebe réplica de Hayek, apesar de grande parte do livro ser um ataque às suas teorias. A obra é precedida, em 1933, por umc onjunto de artigos no jornal Times, reunidos num volume intitulado Meios para a Prosperidade, no qual surge a ideia de criar o Banco Mundial.

Com a publicação da Teoria Geral, em que inúmeros conceitos da economia clássica(e de Hayek) são credivelmente postos em causa, Keynes desperta a atenção dos economistas que rodeiam Franklin Roosevelt(13) a braços com a Grande Depressão(14). Keynes é recebido pelo presidente norte-americano e aconselha-o a aumentar para uma escala colossal os investimentos, nessa altura ainda tímidos, aplicados pelo governo no seu programa de ajuda à economia, o NewDeal. Não se sabe se essa conversa foi decisiva para Roosevelt, provavelmente não, mas sabe-se que, nessa ida à América, Keynes consegue espalhar o seu credo a uma nova geração de economistas que passam a defender as virtudes da economia mista(15).

Essa geração viria a aplicar algumas das ideias de Keynes em vários governos americanos. Durante a Guerra Fria, por exemplo, o presidente Eisenhower(16), um republicano que tinha sérias dúvidas sobre as ideias de Keynes, aplicou uma política de investimentos militares, autoestradas, corrida espacial e de baixas de impostos que parecia recomendada pelo economista britânico. Muitos presidentes seguirão esta receita e o militarismo, apoiado quase sem discussão pelos republicanos, serviu de pretexto para maciços investimentos do Estado, criadores de milhões de postos de trabalho, rapidamente muito superiores ao que Roosevelt gastou na II Guerra Mundial. Wapshott identifica mesmo o período num capítulo a que chama: “A era de Keynes –três décadas de prosperidade sem rival, 1946-80”. Ironicamente, este triunfo começa no ano da morte do economista.

3. OS ADEPTOS DE HAYEK CONQUISTAM O PODER


Hayek não se deu, no entanto, por derrotado. Escreve um livro, O Caminho da Servidão, que publica em1944 sem obter grande sucesso na Inglaterra, mas conseguindo bastante impacto nos Estados Unidos, chegando mesmo a ser condensado numa edição da revista Reader’s Digest.

Nessa obra, Hayek sistematiza ideologicamente o seu pensamento económico, afirmando que qualquer tentação de um Estado em encetar políticas de gestão económica sobre o mercado reúne as pré-condições do totalitarismo. A tese é esta: os planificadores das economias não podem saber a vontade dos outros, pelo que acabam por agir como déspotas.

Quanto a Keynes, ele insistia: “Se estivermos determinados a impedir o desemprego a qualquer preço (...) seremos levados a toda uma espécie de experimentações desesperadas, nenhuma das quais poderá trazer alívio duradouro e todas elas interferirão com a utilização mais produtiva dos nossos recursos.”

Mesmo que se atravesse uma depressão profunda, mesmo com os dramas sociais, fome e miséria que ela acarreta, para que a sua cura seja duradoura é preciso deixá-la acabar naturalmente.

Segue-se, em1947, a primeira das reuniões anuais de Mont Pèlerin, na Suíça, onde Hayek, a expensas de um capitalista, se reúne durante dez dias com economistas e pensadores liberais para discussões intensas –que levam, ao longo dos anos, a constantes dissidências do grupo inicial – sobre o modelo económico de princípio que os unia. Nesta altura o mundo intelectual académico ridicularizava e menorizava os economistas liberais ou de inspiração clássica, classificando-os de retrógrados ou ultrapassados. Isso deu a estes encontros um carácter conspirativo e, até, contrarrevolucionário.

Na primeira reunião de Mont Pèlerin esteve, aos 35 anos, o futuro Prémio Nobel e guru do liberalismo económico, Milton Friedman(17). Esta minoria ideológica teria o seu momento de glória, já depois de Hayek passar pela Universidade de Chicago (1950 a 1962) e de se mudar para a Universidade de Friburgo, na Suíça, a partir de 1963, com vários economistas liberais a conseguirem serem proeminentes na academia, no jornalismo e na política, junto da direita americana e assegurando o apoio financeiro para investigações, publicações e consultadorias de um número significativo de acionistas de grandes empresas financeiras. O próprio Friedman é um exemplo, ao ser um dos conselheiros da campanha presidencial de Barry Goldwater(18).

É com a ascensão ao poder, em Inglaterra, de Margaret Tatcher, em1979, que verdadeiramente temos pela primeira vez um governo que tenta aplicar de “forma pura” o pensamento de Hayek – Tatcher adorava-o e conversou frequentemente com ele. Mas a verdade, por outro lado, é que as políticas liberais ou intervencionistas foram sendo aplicadas nos Estados Unidos pelos sucessivos presidentes, democratas ou republicanos, conforme as suas conveniências políticas conjunturais, os ciclos eleitorais ou as alianças que conseguiam fazer no Congresso e no Senado.

Wapshott conta inúmeros episódios ilustrativos, como o de um Milton Friedman horrorizado perante as políticas de investimento estatal de Richard Nixon(19), de quem era conselheiro, ou o presidente mais à esquerda que os Estados Unidos já teve, Jimmy Carter(20), a aceitar a aplicação de uma política monetarista que consciente e propositadamente iria provocar uma recessão e desemprego, para conter a escalada de preços que o embargo petrolífero árabe provocou e tentar resolver a chamada estagflação(21).

Logo a seguir a Thatcher, seria Ronald Reagan a tomar o poder nos Estados Unidos sob slogans económicos liberais. Enquanto Thatcher privatizou tudo o que conseguiu e reduziu os subsídios dados pelo Estado nas áreas da saúde e da Segurança Social, Reagan preocupou-se sobretudo em reduzir impostos – que na sua época chegavam a ser acima de 90% dos rendimentos.

Ambos os países tiveram crescimentos económicos significativos, vencendo um período de aumento do desemprego, mas Hayek olhava para ambos com ceticismo.

Sobre Thatcher achava que ela não tinha ido suficientemente longe na desintervenção do Estado na economia e que os vícios que ela se propunha eliminar estavam só provisoriamente controlados. Também não estava de acordo coma sua política social.

Sobre Reagan, pode dizer-se que, simplesmente, não se reconhecia nas suas políticas, apesar do rótulo de “liberalismo” com que se apresentavam, que pouco mais eram do que uma “vigarice” retórica (a expressão é de Wapshott), sem aplicação real na prática.

4. A TERCEIRA VIA MISTURA TUDO


Na verdade, quando Thatcher saiu do governo, a Grã-Bretanha começou a enfrentar dificuldades herdadas de algumas das suas políticas que levariam à queda do seu partido e à ascensão da “terceira via” de Tony Blair(22), que conquistara o Partido Trabalhista com um discurso que, na política económica, “casava”, de certa maneira, Keynes e Hayek. O mesmo se pode dizer sobre o democrata Bill Clinton(23) que, ironicamente, herda dos republicanos Ronald Reagan e George Bush(24) o maior défice da história dos Estados Unidos e deixa ao seu sucessor, GeorgeW. Bush(25), um agradável superavit nas contas do Estado– tudo o que Hayek recomendaria.

Uma das consequências do colapso da União Soviética e de todo o bloco do Leste Europeu, apresentado como triunfo do liberalismo económico, seria a inversão da situação que Hayek viveu a partir do fim da GuerraMundial: agora, no mundo intelectual, académico, jornalístico e político, qualquer ideia que tivesse o mínimo parentesco com as teses de gestão dos Estados de Keynes era marginalizada, perseguida e ridicularizada.O liberalismo económico parecia ter vencido de vez, houve mesmo quem proclamasse “o fim da História”(26).

Hayek,que viveu anos sob depressão clínica, de que só recuperou depois da obtenção do Prémio Nobel, morreu na consciência feliz de que todo o seu trabalho intelectual fora reconhecido e estava a influenciar decisivamente os governos mais desenvolvidos do mundo. Mas a verdade é que a História não acabou aí.

A revolução tecnológica, que fez aumentar para a velocidade da luz o processamento dos negócios, originou um verdadeiro novo mundo de crime financeiro, à escala mundial, numa roda livres em controlo, cada vez mais complexo, com a complacência dos bancos centrais, que originaram várias crises depressivas, falências gigantescas e desemprego alarmante, sob a impotência dos Estados, desarmados de qualquer capacidade de controlo da situação. E, no meio disso, houve o 11 de Setembro(27)e o alarme do terrorismo. Esse foi o pretexto para GeorgeW. Bush fazer ressuscitar Keynes e, a coberto da necessidade de defesa dos Estados Unidos, tentar relançar a economia com enormes investimentos militares ou em áreas subsidiárias, deixando ao seu sucessor, Obama(28), um défice descomunal.

5. HÁ MESMO UM VENCEDOR NESTE DUELO?


Wapshott tem a extrema qualidade de explicar, de forma simples, problemas económicos complexos –não há um único gráfico ou uma única equação ao longo de todo o livro– e analisa, no final, a atual crise económica mundial, até 2011.Tenta,depois,decretar um vencedor nesta batalha:Keynes ou Hayek?

O veredicto do autor inclina-se para Keynes, creio que sem total convicção, por, em primeiro lugar, quase todas as economias do mundo poderem ser classificadas como “economias mistas”,mesmo após a euforia liberal dos anos 80 e 90, o que faz que as teses de Keynes sejam na prática mais aplicadas do que as de Hayek. Por outro lado, Keynes terá vencido do ponto de vista teórico, pela recomendação de aplicação de medidas de intervenção do Estado apenas em alturas recessivas, mesmo à custa de crescimentos de défices que, nas alturas em que a economia expande, podem então ser reduzidos.

Isto respeita os princípios do mercado livre e deixa Hayek despido do seu argumento principal: o neototalitarismo desse tipo de intervenção, desmentido na prática pelos países escandinavos, onde o Estado é intervencionista há dezenas de anos sem notícia de corte das liberdades individuais e com resultados económicos positivos.

No fundo, a questão, simplificada, que enfrentamos nas nossas atuais economistas mistas é esta: queremos políticas económicas que tentem assegurar pleno emprego ou políticas económicas que tentem apenas controlar a inflação?

Essa é a questão dos nossos dias e foi o ponto de partida para o confronto entre Keynes e Hayek.

Por analisar fica a história paralela à deste livro dos fenómenos económicos dos países comunistas – à luz dos padrões de medição atual, a Rússia bolchevique e o estalinismo tiveram crescimentos económicos recordistas e, depois, períodos de depressão violentos – ou da atual China, o país de maior crescimento económico no mundo, montado num regime político que nada tem que ver com os do ocidente.
Aqui sim, esteve o confronto que realmente definiu a economia moderna. E adeptos de Keynes ou de Hayek são capazes, com facilidade, de encontrar algumas lacunas ou imprecisões académicas no relato de Wapshott. Não creio que essas omissões desvalorizem este Keynes/Hayek.

O autor relata bem uma boa história, cheia de pormenores divertidos e picarescos, que nos ajuda a compreender como chegámos, economicamente, ao ponto em que estamos. Quis, no entanto,encontrar um vencedor no combate entre o intelecto daqueles dois titãs da ciência económica. A sensação com que fechamos o livro é que, bem vistas as coisas, ambos perderam para alguma coisa que ainda há de surgir ou ressurgir.

Notas

(1) José Sócrates –foi primeiro-ministro de Portugal entre 12 de março de 2005 e 21 de junho de 2011. É acusado pelos seus detratores políticos de ter deixado o País à beira da bancarrota por ter aumentado enormemente as despesas do Estado.

(2) Em 7 de dezembro de 2011 o jornal Correio da Manhã noticiou que o ex-primeiro-ministro José Sócrates comentou em Paris a crise na Europa, durante uma conferência com colegas universitários da Sciences Po, onde estuda Ciência Política. “Para pequenos países como Portugal e Espanha, pagar a dívida é uma ideia de criança. As dívidas dos Estados são por definição eternas. As dívidas gerem-se. Foi assim que eu estudei.” Mais tarde, Sócrates afirmou que o sentido das suas palavras estava deturpado e que se referia ao pagamento por inteiro e de uma só vez das dívidas dos Estados e não ao pagamento faseado no tempo e em proporções adequadas.

(3) Passos Coelhoé primeiro-ministro de Portugal desde 21 de junho de 2011.Acusado pela esquerda portuguesa de ser um“fundamentalista neoliberal” está, contraditoriamente, a aplicar o maior aumento de impostos de que há memória do País para conseguir cumprir as metas de défice negociadas coma troika, um grupo de credores do Estado português constituído pela Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional.

(4) Em 20 demaio de 2010, como líder do Partido Social Democrata, Passos Coelho deu uma palestra na Universidade Católica onde defendeu que o Estado deve apenas ter uma ação de regulador da economia. Mas mesmo para esse papel ressalvou. “Os Governos gostam de mandar nos reguladores. Muitas vezes, estes sãonomeados apenas por questões políticas e não devido ao seu perfil técnico.” Passos defendeu que a Constituição também deveria deixar de exigir a tendência gratuita dos sistemas de saúde (o que aparentemente contradiz, emparte, Hayek) e de educação.

(5)Margaret Hilda Thatcher(13 de outubro de 1925) – é uma política britânica, primeira-ministra de 1979 a 1990.

(6)Ronald Wilson Reagan (6 de fevereiro de 1911 – 5 de junho de 2004) foi um ator de cinema e político dos Estados Unidos daAmérica, governador daCalifórnia (1967-1975) e 40.º presidente dos Estados Unidos (1981-1989).

(7)Alfred Marshall (1842-1924) – foi um dos mais influentes economistas de seu tempo. Seu livro, Princípios de Economia (Principles of Economics) reuniu num todo coerente as teorias da oferta e da procura, da utilidade marginal e dos custos de produção, tornando-se o manual de economia mais adotado na Inglaterra.

(8)Gunnar Myrdal (1898-1987) – foiumeconomista sueco socialista que motivou a decisão bipolar do Prémio Nobel da Economia de 1974, dividido comHayek, liberal. Myrdal foi galardoado “pelo seu trabalho pioneiro na teoria da moeda e das flutuações económicas e pela análise penetrante da interdependência dos fenómenos económicos, sociais e institucionais”.

(9) “É a economia, estúpido!” foi um slogan político inventado por JamesCarville, o principal estratega da campanha presidencial de Bill Clintonem1992. Procurava focar o eleitorado naquilo que os democratas achavam ser o principal problema com que os EUA se defrontavam na época.

(10)Nicholas Wapshott (1952) – é inglês mas trabalha há vários anos nos Estados Unidos. É jornalista e autor de Ronald Reagan and MargaretThatcher: a Political Marriage. Foi editor dos jornais Times, de Londres, e do NewYork Sun e, entre muitas outras colaborações, foi editor do programa televisivo de OprahWinfrey.

(11)Carl Menger(1840-1921) – desenvolveu uma teoria subjetiva do valor, a teoria da utilidade marginal, ligando-a à satisfação dos desejos humanos, e refutou a teoria do valor-trabalho, desenvolvida pelos economistas clássicos Adam Smith e David Ricardo.

(12) Eugen Böhm Ritter von Bawerk, conhecido como Eugen von Böhm-Bawerk (1851- 1914) e Von Weiser Friedrich Freiherr von Wieser (1851-1926) foram decisivos para a imposição das ideias da escola austríaca, misturando os seus vastos conhecimentos em economia com história, sociologia e outras áreas científicas.

(13) Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) – foi o 32.° presidente dos Estados Unidos (1933-1945), realizou quatro mandatos e morreu durante o último.

(14) A Grande Depressão teve início em1929 e persistiu ao longo da década de 1930, terminando apenas coma Segunda Guerra Mundial. A Grande Depressão é considerada o pior e o mais longo período de recessão económica do século XX. Este período registou altas taxas de desemprego, quedas drásticas do produto interno bruto de diversos países, bem como quedas drásticas na produção industrial, preços de ações, e todos os medidores de atividade económica, em diversos países no mundo. O dia 24 de outubro de 1929 é considerado popularmente o início da Grande Depressão, com a violenta queda da Bolsa deWall Street registada nesse dia,mas a produção industrial americana já havia começado a cair a partir de julho.

(15) A definição mais simples de economia mista é a de que reúne os métodos e objetivos do capitalismo e do socialismo. Aos princípios do mercado são acrescentados umacerta redistribuição dos rendimentos através dos impostos e do sistema de Segurança Social, há algumas firmas do Estado em certos sectores de atividade e procura-se atingir o pleno emprego. A maioria das economias ocidentais tinha este tipo de economia, com maior ou menor grau de envolvimento do Estado, até à chegada ao poder de Margaret Tatcher, na Inglaterra, que abandonou as políticas de rendimento, privatizou inúmeras indústrias e serviços nacionalizados e tentou aplicar uma política monetarista inspirada em Milton Friedman e em Hayek.

(16)Dwight David “Ike” Eisenhower(1890-1969) – foi o 34.º presidente dos Estados Unidos de 1953 até 1961. Antes disso foi general e durante a Segunda Guerra Mundial serviu como comandante supremo das Forças Aliadas na Europa.

(17)Milton Frideman (1912-2006) – foi conselheiro do presidente americano Richard Nixon. Recuperou a teoria quantitativa do dinheiro, reafirmando que as alterações de massa monetária explicam as alterações nos níveis de preços e da atividade económica. Isto está na base da gestão monetarista da economia, que os chamados governos liberais, a partir da década de 80 do século XX, tentaram aplicar, em vez das políticas inspiradas em Keynes. Uma das teses de Friedman é a de que comum a política monetária correta, a Grande Depressão teria durado apenas umpar de anos, o que, a ser verdade, atinge o edifício teórico de Keynes. Teve larga intervenção mediática, à escala planetária através da televisão, defendo a saída do Estado da economia, à maneira de Hayek. O seu Prémio Nobel é de 1976.

(18) Barry Morris Goldwater(1909 – 1998) – teve nos anos 60 na América um papel semelhante ao que hoje em dia tem oTea Party, ao colocar na agenda política ideias da direita que a corrente maioritária parecia ter eliminado de vez. Foi um homem de negócios, Senador do Arizona (1953–1965, 1969–1987) e foi nomeado em 1964 pelo Partido Republicano como candidato à Presidência dos Estados Unidos, eleição que perdeu para Lyndon. B. Johnson com a maior derrota de sempre na história das candidaturas republicanas.

(19)Richard Milhous Nixon (1913-1994) – foi o 37.° presidente dos Estados Unidos (1969-1974) e foi o único presidente a renunciar na história dos Estados Unidos. Foi também representante e senador pelo estado da Califórnia e 36.° vice-presidente de seu país, durante o governo de Dwight Eisenhower.

(20) James Earl “Jimmy” Carter, Jr., ou simplesmente Jimmy Carter (1924) – foi o 39.° presidente dos Estados Unidos e vencedor do Prémio Nobel da Paz de 2002. Carter serviu dois mandatos comosenador do Estado da Jórgia e um como governador da Jórgia (1971-1975).

(21) Estagflação – é uma palavra que tem origem na crise económica que assolou o mundo durante a década de 1970,motivada pelo sobreaquecimento das economias dos países desenvolvidos, a partir da excessiva expansão de procura agregada, o que levou a pressões inflacionistas. Houve também uma redução da oferta agregada, a partir das restrições impostas pelos países produtores de petróleo com perdas de colheitas e redução de atividades em sectores que dependiam do petróleo, levando ao desemprego. Define-se como uma situação em que faltam instrumentos institucionais que pelo método científico econométrico retirem uma economia da chamada “estagnação”, pois ocorreu uma situação anormal, em que a inflação e o desemprego sobem conjuntamente, contrariando a habitual situação inversa das relações entre esses dois índices. A ocorrência de fenómenos de estagflação pode resultar de dois processos fundamentais: a denominada inflação por inércia (ou inflação esperada) e a ocorrência de anormalidades do lado da oferta.

(22)Anthony “Tony” Charles Lynton Blair (1953) – [ocupou o cargo de primeiro-ministro do Reino Unido de 2 demaio de 1997 a 27 de junho de 2007, de líder do PartidoTrabalhista de 1994 a 2007 e de membro do Parlamento Britânico de 1983 a 2007.

(23)William “Bill” Jefferson Clinton (19 de agosto de 1946)– nascido William Jefferson Blythe III e mais conhecido como Bill Clinton foi o 42º presidente do país, por dois mandatos, entre 1993 e 2001.Antes de servir comopresidente, Clinton foi governador do estado do Arcansas por dois mandatos.

(24)George Herbert Walker Bush (1924) – foi o 41º presidente do país (1989-1993). Anteriormente já tinha servido como embaixador na ONU(1971-1973), diretor a CIA (1976-1977), e foi o 40º vice-presidente dos Estados Unidos na gestão do presidente Ronald Reagan (1981-1989).

(25)George Walker Bush (1946) – foi o 43º presidente dos Estados Unidos, de 2001 a 2009, e o 46º governador doTexas, de 1995 a 2000.

(26) “Fim da História” – é uma ideia proposta pelo filósofo Hegel no séculoXIX e retomada ressurgiu num artigo, publicado emfins de 1989, como título de O Fim da História e, posteriormente,em1992, coma obra O Fim da História e o Último Homem, ambos do Francis Fukuyama.

(27) Os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 foram umasérie de ataques suicidas coordenados pela Al-Qaeda aos Estados Unidosem11 de setembro de 2001. Na manhã daquele dia, 19 terroristas da Al-Qaeda sequestraram quatro aviões comerciais e embateram-nos propositadamente contra grandes edifícios, matando 2996 pessoas.

(28) Barack Hussein Obama II (1961) – é o 44.º e atual Presidente dos Estados Unidos, desde 24 de janeiro de 2009, e oNobel da Paz de 2009.

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