A vida de espião não é boa

Para quase todos nós vida de espião é vida de James Bond, com belas mulheres, assassinas e tudo. Ou seja, não existe. Espião deprimido e de espírito pardacento, ou se encontra nos livros de John le Carré, onde a aventura tem um peso na consciência, ou não nos desperta qualquer tipo de cumplicidade. 

Em Portugal desconfio que os espiões que temos passam a vida, das 9 às 5, de segunda a sexta, dentro de um escritório igual a muitos outros, a bocejar enquanto preenchem boletins do Euromilhões nos intervalos dos recortes de jornais que lentamente vão fazendo. Às vezes colam a jornalada em formulários A4, que guardam em pastas beges. Um dia, algum chefe de serviço, um director, talvez mesmo um ministro, lerá os relatórios daí saídos. O momento mais excitante do dia deve ser quando o tubo de cola se acaba e é preciso preencher um requerimento a solicitar a respectiva substituição. Mas isto sou eu a adivinhar, porque, juro, todos os cromos que se me apresentaram intitulando-se de “espiões” – normalmente uns fulanos a querer revelar pretensas e falsas informações bombásticas – foram arquivados no armário dos “malucos” que, de vez em quando, visitam os jornais. 

Imagino, portanto, o estado de perplexidade da senhora Anne Wright ao perceber, ao fim de 30 anos, que o seu inquilino das águas-furtadas, introspectivo e engelhado, tinha sido um garboso espião do tempo da guerra contra Hitler! A história está hoje contada nesta revista, umas páginas adiante. E parece a base para um livro de John le Carré. Eu, depois de a ler, comecei a revisitar a memória, não vá algum daqueles malucos que se cruzaram comigo, afinal, estar a falar verdade. 

in 24horas, 15 de Outubro de 2005

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