Não há traidores
nesta vidinha

Não acredito que alguém de boa índole ache que tenha, alguma vez, traído. Por exemplo, estou farto de encontrar homens casados, frequentemente enrolados com amantes de curta duração, como se fossem adolescentes de liceu, a proclamar aos quatro ventos a sua extraordinária e invulgar lealdade perante a família e os amigos, no emprego, ao partido, ao clube, eu sei lá. Vejo-os até a gabarem-se de ser essa a sua maior qualidade, mais do que a inteligência, a sensibilidade, os bíceps, ou outro disparate qualquer. E acho que eles acreditam mesmo que estão a dizer a verdade. 



A traição já não é pecado,  passou ao estatuto de necessidade básica: não se tem sucesso ou prazer na vida se, ao que parece, não se trair. E como vivemos numa sociedade de sucesso e prazer há, portanto, que trair. Um remoto pudor, no entanto, obriga-nos a encontrar um álibi para a traição. No amor esse álibi chama-se “carência”: o traidor está “carente” e, coitado, tem desculpa para ir dar umas cambalhotas proibidas. E a culpa até é do traído, pois ele é que não percebe que o traidor está “carente” e nada fez para o curar desse tenebroso mal. 



Na profissão e na política a traição tem outro álibi: “projecto”. Aqui o traidor dá uma cotovelada no colega porque o “projecto” precisa de nova “dinâmica” no qual o traído – obviamente um bom rapaz ou uma excelente moça – “não se enquadra”. Por isso, para o bem de todos no partido ou no emprego, para o bem do “projecto”, há que escorraçar esse grande companheiro ou aquela rapariga tão simpática, “com a dignidade possível”. O traidor está, portanto, a fazer um bem à sociedade. E, por isso, não há mesmo traidores nesta nossa vidinha. 
in 24horas, 10 de Setembro de 2005

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