Durante a entrevista concedida ao Bitaites, Souto Moura nunca se esquivou a qualquer pergunta. Ficou apenas por esclarecer por que razão, juntamente com um jogo de dardos arrumado a um canto da secretária, se encontrava uma fotografia em tamanho A4 do director do 24horas repleta de buraquinhos. Desculpem mas isso é matéria do segredo de justiça, esclareceu. Segue-se, então, a entrevista.
Bitaites – Agora que a rusga à redacção do 24horas foi feita, quais as conclusões que a Procuradoria-Geral pode avançar em relação ao chamado caso Envelope 9?
Souto Moura – Poucas. Como sabe, pudemos levar o computador do jornalista que escreveu a história do envelope 9 mas, infelizmente, não pudemos ainda abri-lo: encontra-se selado à espera de uma decisão do tribunal. Este é um exemplo de como todo este processo é contra a ordem natural das coisas: um envelope que era suposto estar selado ficou aberto; um computador que era suposto estar aberto encontra-se agora selado. Assim não se consegue trabalhar.
Bitaites – Quem deve ser responsabilizado pela situação?
S. M. – Penso que o maior responsável é o senhor Pedro Tadeu, director do pasquim em questão. Aliás, devo dizer que sabemos muito mais acerca dele do que o próprio pensa. Temos todas as razões para suspeitar que terá sido – em determinado período da sua vida que ainda iremos apurar com exactidão – um importante redactor do jornal Avante. Um agitador, portanto. Encontramo-nos também num processo de averiguações visando determinar qual o papel desse senhor na equipa editorial do extinto jornal A Capital. Terá sido ele o responsável por uma publicação informática qualquer – ainda vamos apurar o nome – e é bem possível que tenha usado os conhecimentos adquiridos para influenciar a decisão de mandar selar o computador. Um magistrado que nada percebe de informática pode tornar-se uma autêntica vítima nas mãos de geeks do Excel sem escrúpulos.
Bitaites – Quando pensa concluir a investigação a Pedro Tadeu?
S. M. – Muito possivelmente só no final do mandato do senhor Presidente Cavaco Silva. O facto de A Capital já ter fechado dificulta-nos um pouco a investigação, pois já não existem computadores para espiar.
Bitaites – Não poderá pensar-se que o senhor Procurador estará mais empenhado numa perseguição a jornalistas do que em esclarecer o mistério do Envelope 9?
S. M. – O mistério do Envelope 9? Que expressão tão falaciosa. Dá-me ideia que leu demasiados romances da Agatha Christie quando era pequenino. Eu, pessoalmente, preferia os livros do Tintim. Esse, sim, era um repórter como deve ser. E nos livros policiais o culpado é sempre o mordomo, nunca o magistrado.
Se me permite, verdadeiro mistério é transformar esse trauliteiro do senhor Tadeu numa espécie de herói nacional. Dá entrevistas às rádios, televisões e jornais, é convidado especial em talk-shows, enfim, só falta fazer de professor de Jornalismo nos Morangos com Açúcar e minar a juventude com teorias subversivas.
Este caso do Envelope 9 está a tomar proporções despropositadas. Até aquele grande cineasta português, Manuel Oliveira, está a pensar em fazer um filme sobre o assunto. Um homem tão respeitado como o senhor Oliveira, que tem feito sempre uns filmes tão sossegadinhos, vai agora meter-se numa alhada destas? Inconcebível. E digo-lhe mais: temos razões para acreditar que convidou o próprio Tadeu a participar no filme como actor.
Bitaites – Pedro Tadeu irá então desempenhar o seu próprio papel, o de director do 24horas?
S. M. – Não, vai fazer de envelope. Parece que as características físicas do senhor – alto, magrinho, enfim, um típico trinca-espinhas – se adequam às exigências do papel. Se quer saber a minha opinião, acho vergonhoso. Eu não gostaria de estar no lugar dele se, por força do realismo do personagem, fosse forçado a ser manuseado a toda a hora pelos jornalistas que investigaram a história. Já imaginou se algum deles se lembra de lamber o envelope? Que pouca-vergonha. O que se passa na redacção do 24horas é uma pouca-vergonha.
Bitaites – Porquê?
S. M. – Fizeram uma capa onde se juntaram todos e levantaram os braços. Nem quero referir-me ao acto pouco higiénico de, no final de um dia de trabalho e conspirações, ficarem todos juntinhos com os braços para cima. De qualquer modo, levantar os braços não é nada de especial. Eu já os consigo levantar assim há muito mais tempo, e nunca pensei em ser capa de jornal por causa disso. A primeira vez que o fiz – se me permite a ousadia de fazer uma declaração mais pessoal – foi aos oito anos quando passeava de bicicleta à beira-mar. Tomei balanço, levantei os braços e disse Olha, mãezinha, sem mãos! Agora estão todos ansiosos que eu imite os jornalistas desse pasquim e levante os braços em sinal de rendição.
Bitaites – Que aconteceu a seguir?
S. M. – Na bicicleta? Bem, desequilibrei-me, espalhei-me ao comprido e bati com a cabeça no chão. Não foi nada de grave nem cheguei a magoar-me muito – mas fiquei inconsciente durante alguns segundos. Foi quando acordei que tomei a decisão de me licenciar em Direito na Faculdade de Coimbra.
Bitaites – Não pensou nessa altura no cargo de Procurador-Geral?
S. M. – Não, isso foi mais tarde, quando me espalhei de mota.
in Bitaites, 18 de Marços de 2006
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