Um conto de fadas

Eduardo Pitta expõe uma ideia esclarecedora: se a operação policial que foi sujeito o 24 Horas se tivesse passado com um jornal “sério”, teria caído o Carmo e a Trindade. Tenho, sobre este assunto, uma historieta lateral.

Eu que trabalho para viver, já fui jornalista no 24 Horas. Não me arrependo de lá ter estado, assim como fiquei aliviado quando sai. «Não entendia o “produto”», como diziam os directores, com a graça de quem faz “o jornal que mais subiu de vendas”. Mas o “produto” tinha uma regra admirável: não publicava mentiras. E quando se enganava, desmentia tudo com grandes parangonas. Claro, que não pretendo que a regra se aplique a alguns jornais de referência, estou de acordo que seria muito enfadonho ter que ler edições inteiras com desmentidos, mas podiam aprender com a ralé. O director do 24 Horas, Pedro Tadeu, antigo jornalista do Avante, actualmente, apostado em fazer o jornal mais alienante possível, assumia esta limitação, dizendo que o seu jornal não tinha credibilidade suficiente, para se dar ao luxo de publicar uma mentira.

Alguns meses depois, ajudei a organizar uma manifestação contra a ocupação do Iraque. Durante o desfile, a organização ambientalista GAIA tinha criado uma peça de rua, em que participavam figuras mascaradas de soldados norte-americanos, bombistas suicidas e vítimas civis. A encenação pretendia exprimir que a escalada da guerra era louca e assassina.

O jornal Público estampou nas suas páginas, para ilustrar a manifestação, uma fotografia com uma legenda que garantia que os manifestantes tinham-se vestido de bombistas suicidas. Em nenhum lugar da notícia era enquadrada e explicado esse acto.

Aproveitando a fotografia, o impoluto e imparcial José Manuel Fernandes fez mais um editorial a afirmar que os manifestantes contra a guerra eram apoiantes declarados do terrorismo internacional e escandalizou-se que os manifestantes tivessem permitido gente a homenagear os bombistas suicidas. A seguir do guru, as hienas menores replicaram o mesmo argumento em várias crónicas.

Identificando-me como um dos organizadores da manifestação, pedi esclarecimentos ao provedor do leitor da altura, o jornalista Joaquim Furtado.

Na semana seguinte, saiu a sentença salomónica :

1. Consultado o director José Manuel Fernandes, o próprio desmentiu ter tentado aproveitar uma fotografia enganadora para desqualificar a manifestação. A esse respeito, o Furtado garantiu que o seu director Fernandes era um modelo de virtudes.

2. Que as jornalistas responsáveis pela peça, consideravam correctas a legendagem da foto.

3. Apesar disso, o provedor teve que considerar que a fotografia não estava correctamente enquadrada. No final acrescentou ufano: “disseram-me que Nuno Ramos de Almeida é jornalista do 24 Horas”. Assim como dissesse: “Como é que uma puta pode queixar-se de ser violada?”.

Confesso que fiquei bastante divertido com a resposta do provedor. Mandei-lhe outra mensagem dizendo que não tinha percebido a alusão. E que se estava tão interessado na minha biografia podia ter dito os vários órgãos de comunicação em que tinha trabalhado; informações tão relevantes como o clube da minha preferência, o meu posicionamento político e o número de filhas que tenho. Tendo em conta que Joaquim Furtado há muito tempo que não fazia jornalismo, lembrei-lhe, de passagem, a regra de cruzar as informações; se o tivesse feito saberia que eu já não era jornalista do referido jornal.

Magnânimo, na semana seguinte o provedor reconheceu que eu já não era, mas que tinha sido. Estou portanto condenado para todo o sempre.

Acredito que José Manuel Fernandes viu sair com uma lágrima ao canto do olho, tão estimável provedor.

in Aspirina B, por Nuno Ramos de Almeida, em 19 de Fevereiro de 2006

Sem comentários:

Enviar um comentário